sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Trazes contigo a evidência e a impostura...


Trazes contigo
A evidência e a impostura
De objectos e de fotografias
E na memória
Os embustes e as insinuações
De como passaram os dias
Ou morreram as pessoas
E se foram as paixões
Objectos que sobreviveram
A tantas desilusões
Trazes contigo milhares de recortes
De outras vidas que sonhaste viver
Imagens mergulhadas na tua mente
Inevitavelmente limitada
Onde queres que flua todo o universo
Só isso te deixa saciada
A tua existência porém
Pode enlouquecer num momento fugaz
E só a insistência prevalecer
De fazeres amor com qualquer sexo
Procurando nesse espasmo
O nexo
Para o nascer e para o morrer
E no orgasmo
A improvável coerência do ser

sábado, 6 de novembro de 2010

Separei-me do momento (pensando em Fernando Pessoa)

Separei-me do momento
Da sequência do que aconteceu
Do que teria feito
A memória de um dia habitual
Preferi a escrita
(a ideia que se imprime)
A reflexão
(a mente que se redime)
É então indiferente
Se o sol brilhou
Ou se choveu a cântaros no quintal
Ou se a meio da tarde
Me procuraste para fazer amor
Sequiosa e fatal
O que passou fora de mim
Neste dia não fui eu
Enquanto revolvia o já vivido
Consta que anoiteceu
Não lamento o dia perdido
Foi apenas um respirar inconsciente
E por isso decerto mais sentido
Que um outro qualquer
Separei-me do momento
Da sequência do que aconteceu
Não há mais nada a dizer
Agora já me sinto
De regresso
Ao meu antigo Eu
Mergulhado de novo no absinto
Que nunca conseguiu
Perceber em sequência
Como em cada dia
Se viveu

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Sweet Life



I
Vento que sopra talvez do mar
Ou de uma dobra da Natureza onde se esconde a felicidade
Calor ameno que chega para dar a sensação vital de ser
Memórias, memórias de aqui estar
Ou talvez em outro lugar onde nunca esteve
Mas onde sonhou amar
Ainda o amor como liana que o prende à vida
Mesmo quando não está presente ou apenas em esboço
Como uma imagem distante no fundo da página
Onde se escreve com as duas mãos
A direita que acaricia e a esquerda que segura
O sexo que volteia à procura do amplexo
Que amplifica o momento e o ser
Voraz ainda sempre
Como comandado geneticamente

II
Vento que sopra do mar
Talvez do mar
Felicidade que rodopia por um momento
Antes de tudo acalmar
E o banal de sempre voltar

III
Rodopia, rodopia, rodopia
Por um momento
Que vale pela eternidade
A que não pertence
É bom ser

IV
Vento que sopra do mar eterno
Momento que o envolve
Sereno

V
Grande como um deus
Vence a ambiguidade
O momento é seu
É feliz

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Um chá como quem adormece


Deste-me um chá e disseste
Adormece meu querido
Tens agora
Todo o tempo do mundo
Para descansar
Dessa incerteza de viver
Vou aqui ficar por ti
A respirar até que o pó se desvaneça
E perca a forma impúdica e quase demente
Que em ti soou

Meu amor ouvi dizer ainda
Como quem morre
Ao anoitecer
No chá duas folhas suspensas
Dispersas na impossibilidade de se encontrarem
Como nós quando vivíamos
A amargura de nada dizer
Sem tempo para declarações
Só nos gestos por vezes um lampejo
Do nosso desejo

É por isso que aqui fico ainda
Arrefecendo com o chá
Até que um último murmúrio em forma de fumo
Me deixe para se juntar à cremação
Que me dissipe totalmente
Ou melhor
Me leve para aquela franja do Universo
Onde possa viver eternamente
Amálgama de elementos
Que me acolherão
Como CO2, Mg ou H2O
Vá lá saber como se desenhou o paraíso
Sem pensamentos
Sem tormentos
Pó H2O Só

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

No rosto da mulher...


No rosto da mulher
Há ternura, fuga e mãe
A mulher é diferente
Quase sempre
Se o meu coração
Bate ao ritmo da mulher
Sente-se mais feliz
Ela seduz o Universo
E até ao anoitecer
Sinto-me diverso
Depois sonho na fusão
Num único ser
Numa amálgama de querer
Num sólido momento transparente
Onde para lá dos seus olhos
Brindamos em êxtase
Eternamente

Máscaras

Máscaras
Há quem garanta
Com sua certeza
Que as verdadeiras
As mais estranhas
Circulam em Veneza
Nas asas de mistérios inauditos
Representando
Não a vida
E as suas facetas
Mas a morte
E a sua antecipação
Dolorosa
Momentos angustiantes
Silêncios de medo
Tudo o que não se vê
E se pode imaginar
De preferência
Com a mente louca
E na mão talvez
Se for Carnaval
Uma inoportuna roca

terça-feira, 12 de outubro de 2010

Morir y Vivir
(Pensando en Federico García Lorca)

Que piernas
Tan buenas
Que tienes ay
Quería tocarles
Y morir así
Que labios
Tan rojos
Que tienes ay
Quería besarlas
Y morir así
Que pechos
Tan bonitos
Que tienes ay
Quería comerlos
Y morir así
Que ideas
Tan fuertes
Que dices ay
Quería amarlas
Y vivir así

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Árvore visão eterna céu incluido


Árvore
Frondosa
Visão eterna
Céu incluído
Não se ouve um ruído
Só musicas estranhas
A que não pertencem
Os sons habituais
Da tua respiração
O murmúrio da tua voz
Longínquo
Fala no momento atroz
Em que disseste
Já não sou a mesma pessoa
Que amaste
Agora
Agonizo
No vazio dos teus braços
Há escuridão
Nos nossos espaços
Nada faz sentido
Árvore
Loucura
Visão fraterna
Céu incluído
Só ramos secos
Nem uma folha esquecida
Vazia como os braços
Que te abraçavam
Mas não te retinham
Agora
As gotas de uma chuva
Imprevista
Gelam os últimos desejos
De que me lembro
A natureza
Na sua contínua sobriedade
Confirma a certeza
Da perda da alegria
O momento esquece
O futuro
O amor é impuro
Adeus árvore

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Esquecimento, Esperança, Sonho

I- O Esquecimento

Viajo para longe
Sem gente
E nesse mundo vazio
Dolente
Esqueço o passado
Intensifico o presente
Estou numa praia como esta
Onde repousam dias antigos
Ao sol
Quero esquecer-me ao sol
Do mundo agora mudo
E numa praia como esta
Frente a um lago incandescente
Rolar como um seixo perfeito
Como uma figura embriagada
Talvez pela maresia
E na luz filtrada
Adormecer até ao fim do dia

II - A esperança

Ao anoitecer
Esperarei desesperadamente
Por um rosto alado
Que regresse do futuro
E se espalhe pelo mar
Onde brilhará então
Uma lua de encantar
E numa praia como esta
Poderei acreditar na giesta
No pulsar de um coração
No emergir de uma mão
Que me procure
E me segure
De novo à vida
Como uma vitória do amor
Sobre o estertor

III – O sonho

Numa praia como esta
Esqueço o passado
Intensifico o presente
E sonho
Que povoo o amanhecer
Com nova gente

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

"L´amour fou"


Lembras-te daquela última tarde
Silenciámos a vida à nossa volta
Tínhamos saudades um do outro
Marcamos um encontro
No vendaval mais próximo
Chegamos os dois mais cedo
Impelidos por um vento
Indomável e quase tóxico
Despimo-nos à velocidade do desejo
Como se não nos conhecêssemos
Ou fosse um primeiro ensejo
Gestos perturbados e escolhos
Esquecidos nos ombros das portas
Nas ancas redondas das cadeiras
Nos seios insolentes
Dos mármores e das madeiras
Detalhes rasgados por falta de tempo
Ou pela tentação que se apoderou de nós
Como se não estivéssemos sós
O murmúrio dos beijos
Os gritos do bel-prazer
O ritmo e a voracidade
O desejo de quem tem
Pela primeira vez à sua frente
O maior momento do mundo
Ou se despede da vida
Horas a viver sem fundo
Saímos para adormecer
Acordámos ao anoitecer
Para festejar ainda
A vitória insuperável
De estarmos de novo juntos
E de a nada obedecer

domingo, 12 de setembro de 2010

Se eu mandasse no mundo inteiro...

Se eu mandasse
Não nos homens mas no mundo inteiro
Voaria para as Áfricas insolventes
E faria brotar um maná inesgotável
Que debelasse as fomes insolentes
O mundo seria assim um paraíso
Sem prejuízo
Do homem ir além da Taprobana
Ou de fazer amor na praia
Em Copacabana
Se eu mandasse
Não nos homens mas no mundo inteiro
Libertaria os melros das amarras
E as limas gotejariam seus aromas
Sobre bebidas azuis e fumegantes
Como dantes
Se eu mandasse
Não nos homens mas no mundo inteiro
Faria projectar raios de luar
Sobre os campos de batalha inflamados
Congelaria ódios e despeitos
Transformando injustos e injustiçados
Em novos seres quase perfeitos
Se eu mandasse
Não nos homens mas no mundo inteiro
Seria o deus imaginado
Que faria do universo
Um eterno sorriso iluminado

terça-feira, 7 de setembro de 2010

Voltamos ao deserto...

Três dias
E outras noites
Voltamos ao deserto à procura
Do que resta de nós
Do que nunca foi trocado
Ou reconhecido
Nada fazia sentido
Só memórias escondidas
Desejos enclausurados
Vibrações inaudíveis
Mesmo aos ouvidos das emoções vividas
Tudo o que até hoje não dissemos
Que podia ter sido escutado
Proclamado soçobrado
Ou recomeçado
De comum acordo
Ou tácito enlevo
Nem te dei
Nem levo
Três dias
E outras noites
Sentimo-nos depois perdidos
À espera ainda do reencontro
De palavras desconhecidas
Talvez pronunciadas
Pelas nossas bocas
Em momentos diferentes
Não sincronizados
Rapidamente apagados
Para que não constassem
Nunca mais
Três dias
E outras noites
Perdidas a repetir o que já sabíamos
Um do outro
Mesmo o escorpião absorto
Não mexeu um grão
De areia
O momento foi assim
Declarado
Praticamente morto

sábado, 4 de setembro de 2010

Que suavidade mórbida

Que suavidade mórbida
Quando amanhece
Neste murmúrio silencioso
Do ano a dealbar
Não há palavras
Para te convocar
Nem espero que fales
Em teus contornos imaginados
Amanhã
Sei que bastará um olhar
Para te reencontrar
Mais tarde
Viverei o que pensas
Agora
Não fales por favor
Assim poderei acordar
Na visão obsessiva da vida
Onde impera zeloso o amor

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

Isabel, nos anos oitenta...


I
Isabel eras um mito
Vindo do outro lado da vida
Pacote de Winston na mão
Olhar distante
Ou desinteresse
A tua mão era macia

II
Isabel eras o silêncio
Objecto sexual “perhaps”
Passiva como um pássaro apaixonado
O sorriso esbatia-se
Contra as luzes apagadas
Luzes acesas, Luzes apagadas
Esbatia-se
O teu braço era macio

III
Isabel eras uma criança
Os dedos roídos pela impaciência
Saiote branco e folhos
E rendas
A tua vida
Um pouco da tua vida
Eras um Zé
Um amor calculado
Ou desinteressado
Eras o quê
A tua boca era romã
O teu sorriso triste
Eras o mundo à nossa volta

IV
Isabel eras convencional
A tua casa ainda não estava pronta
Móveis melhores, móveis novos
Amanhã tens que ir buscar a tua filha
Eras mãe, eras esposa
O fim
Eras o fim da noite
Pedias desculpa
Nem sei porquê

V
Isabel eras um whisky
Com duas pedras de gelo
Os Beatles
O teu presente
O teu futuro
Um dia deixarás de ser bela
Sê formiga, sou cigarra
Eras a rainha
Com um sorriso triste
Devassada
Eras uma rainha
Quem te conhece
Jura que o fazes muito bem
Eras um impasse
Uma incerteza
Um objecto
A tua vida parecia ser
O prazer dos outros
Por amor
É o amor que te interessa
O amor ou o sexo?
Não sabes do que falas
Tens praticado em demasia
Nem uma só vez
Falaste da cor do mar
Ou do ritmo das ondas

VI
Isabel eras o erotismo
Os seios recortando-se
No azul vermelho da sala
Enchias a noite de sonhos
Sem tempo
Teus lábios eram de facto romãs
Teu corpo era de facto macio
Onde te colava os lábios
Nasciam flores
Quando te fitava os olhos
Brilhavam estrelas
Quando te apertava os seios
Corriam rios
Percorria-te com os olhos cerrados
Como se fosses
O meu caminho habitual

VII
Isabel, nos anos oitenta
Era normal

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

E no entanto vivemos...

Escreves
O que te ditam sonhos multicolores
Publicas
Por canais azuis
Calmos ou trepidantes
Ou simplesmente
Em folhas de papel como dantes
Ninguém te conhece
(os que se lembram de ti não sabem quanto mudaste
nem te reconheceriam em nenhuma circunstância)
Um dia
Deixas de escrever
(Essa forma de respirar sempre ofegante)
Quantos seres perguntarão por ti?
Alguma célula fora do teu corpo
Se agitará de per si?
Não nascemos para sermos reconhecidos
Nem aos nossos próprios olhos
E no entanto vivemos
Oh! Se vivemos...

Nas margens frescas do Outono



O Verão grita sem cessar
Ecoando pelos corredores
Azuis e silenciosos
Da minha tristeza camuflada
Esgravato com denodo os odores
Dos momentos quase felizes
De que me esquecera
Cavalgo nos sonhos inquietos
Antes de cair desamparado na verdade
Passara uma década boçal e imperfeita
Debaixo de um céu infinito
Que ignora a dura realidade
Inicío então aquela sede mortífera
No último deserto onde o novo
Já não aflora na natureza prolífera
E no entanto
Os ventos cálidos do Verão
Pareciam apaziguadores das doenças da vida
Morava agora com vistas para o mar
Mesmo se só vislumbrava a planície verdejante
De um Alentejo alto e de abrasar
Podia baixar as gelosias ao nascer do sol
E acorrer horas mais tarde
Ao convite escaldante do entardecer
Tinha chegado a imaginar um paraíso terminal
Onde os abraços me defendessem do mal
E os beijos espaçados mas sinceros
Ecoassem como pássaros
Nas noites de gestos impropérios
Mas a palavra da verdade era estridente
Não perdoava na sua firmeza prepotente
Percebo que já não terei uma lua de papel
Nem das abelhas o seu glorioso mel
O Verão grita sem cessar
É preciso resistir
Até uma rã coaxar
Nas margens frescas do Outono
Para então recomeçar
Uma nova esperança sem dono

terça-feira, 31 de agosto de 2010

Contem comigo mais tarde em Salém...

Escondo as palavras
De mim mesmo
Não as quero ditas
Usadas a esmo
Humilhando as verdades
Antigas e evidentes
Bato com os nós dos dedos
Nos momentos fechados
Que vivi impunemente
Escondo-me de mim mesmo
Como de um monstro
Olho discretamente
Para a lista dos gestos permitidos
Decreto que os instrumentos que falam
Sejam enclausurados
E por isso deixo as caixas
Com os seus cadeados
Sem investigar
Os números marcados
As horas circulam
Sem se somar
à minha volta
As ternuras perguntam
Pelos sinais
Os desejos são apenas
Gestos de outro tempo
Que não volta mais
Escondo-me
E comigo vão os demais
Ao longe porém
Ruídos tétricos e maquinais
Não vejo ninguém
Nem quero ficar só
Contem comigo
Mais tarde
Em Salém

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Onde estás fada prometida?

I
Onde estás fada prometida
Que me havias de amadurar
Onde andas que te não vejo
Nestas terras de encantar?
II
Procuro com bravo denodo
Qualquer suspiro me confunde
Tomo a parte pelo todo
Que em cada dia se funde
III
Nas tardes de sono dolente
Penso que vens abraçar
Cai a noite e bem te espero
Até a lua adornar
IV
Onde estás fada sentida
Que não te oiço a cantar
Quer chova quer faça sol
Como te hei-de encontrar?
V
Procurar já procurei
Encontrar tinha pensado
Se não és quem sempre amei
Porque ficas a meu lado?
VI
Pergunto em desespero
A quem possa elucidar
Como pode um amor vero
Assim ficar a penar?
VII
Onde estás fada madrinha
Onde estás desnuda e bela
Se és tua e não és minha
Vou partir num barco à vela
VII
Dizem velhos alfarrábios
Que nas ilhas dos amores
Aportam os velhos sábios
P`ra mitigarem as dores
VIII
Talvez daqui a cem anos
Volte de porto ruim
Mas se isso acontecer
Não tenham pena de mim
IX
Que em abono da verdade
Só não quis a solidão
De viver paredes-meias
Com uma fada sem condão

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Com o dia desvanece...


Com o dia desvanece
A ternura que nos implica
Partilhamos a mesma necessidade
Preferimos não nos tocarmos
Ao mesmo tempo
Desfrutamos o outro
Com toda a liberdade
Mesmo a de não pensarmos em nós
Nesse momento

Escurece quando as ímpias mãos
Iluminam os nossos recantos
Somos pirilampos
Do prazer
Com eles sonhamos
Iluminar a noite toda de prantos
De gozo
Do nosso ser

domingo, 25 de julho de 2010

A vida

A vida
É uma interrupção no silêncio abissal
É um relâmpago estrondoso
Na tempestade eterna
Multiversal
É uma vibração assíncrona
É uma mão, uma pena
A vida é o que se passa
Entre o microscópio e o telescópio
Inventados e esquecidos
Para sanidade dos mortais
A vida dissipa-se
Na inconsciência frequente das partículas
Fusão, confusão, separação
Dito isto
Amo as gotas de água
E bebo sofregamente
A que vem torrencial
Inundar a minha mão

quarta-feira, 23 de junho de 2010

Eu também


Amo-te
Eu também
Penso em ti
Sempre que suspendo
O meu dia
Eu também
Ou acordo
Na minha noite
Eu também
Sempre que faço amor
Com alguém
Eu também
Como?
Assim já não está bem?
Eu também

domingo, 6 de junho de 2010

Este é o nosso deserto

Este é o nosso deserto
O mergulho imprevisível
Na absoluta consciência
Da morte ímpia e visível
Essa espécie de temor
Porque amanhã não há poesia
Ou porque é o último dia
Para respirar as palavras
De Pessoa ou de Sophia
Uns encontram um ser de amor
E desafiam a eternidade
A alguns basta saberem
Que a morte é só o decreto
Que garante a igualdade
Mas outros evocam a sorte
Nos despojos da existência
À procura do sentido
Do outro ser que lhes falta
Nenhum aviso é ouvido
Nas areias movediças
Do desejo que os confunde
Quando mergulham sofridos
Pensam nus mas vão vestidos
Da ganga da humanidade
Só lhes resta no final
Fugirem para as palavras
E esconderem a verdade

quinta-feira, 20 de maio de 2010

Não me pertences


Não me pertences
Como o ninho
Não pertence aos pássaros
(O teu corpo
Mesmo louco
Não se entrega
Nem um pouco)
E no entanto
Quando respiro com um prazer
De morrer
Penso que tudo o que abraço
É meu
Que o mundo está a crescer
E confunde
O meu ser
Com o teu

quinta-feira, 13 de maio de 2010

Procuro a beleza...

Procuro a beleza
Numa fronteira transparente
Onde viaja uma réstia de luz
Incandescente
Essa procura o que sente?
Saltam partículas coloridas
Que me atravessam a mente?
É nessa vibração
Percepção inconsciente
Que reside a sensação
Do belo
Em construção?
Procuro a beleza
Quero a exaltação
Do prazer consciente
Que deve rodear a monção
Cálida e dolente
Que assola o meu presente

quarta-feira, 12 de maio de 2010

ExisTenZ

Há o desespero
Que paralisa
Há a esperança
Que ameniza
Há a indiferença
Que adormece
Há a consciência
Que às vezes floresce
Há o palpitar do coração
O que estou a fazer
Em que penso
Há pensamento útil à acção
Outro que corre em atalhos
Sem chegar à minha mão
Há a viagem inevitável
Entre os êxtases
Há o Inverno e o Verão
Há a Primavera e o Outono
Como quem espera na estação
Há correntes fluidas
Naves inseguras
Precipícios desconhecidos
Filme de suspense
Pode ser de terror
Com sorte
Uma história de amor

sexta-feira, 23 de abril de 2010

Loucura tomando conta do dia...

Acordei
Com uma espécie de loucura
Tomando conta do dia
Era a vida
Que mais uma vez
Me desiludia
Um homem passa a vida a conceber sonhos
De olhos bem abertos
Esperando que a luz que o toca
Seja garante de verdade
E afinal
É apenas uma claridade
Mitigada
Que paira dentro de si

Os valores e as definições
Estão sentados
Num canto da memória
Qual vulcão adormecido
Os seres imaginados
Circulam feitos deuses ou duendes
Comendo e bebendo
Com parcimónia e ao acaso
Daquela gamela de escória
Ou de ganga de ideais
Perfeitos ou malvados
Tomam conta da história
É aqui que começa
Esta espécie de loucura
Que acorda com o dia
Na nossa memória

terça-feira, 20 de abril de 2010

O gelo das calotes inglórias derrete

O gelo das calotes inglórias
Derrete
Enquanto te aproximas
Das escórias
Prometes
Continuar as obras desmedidas
E transformar as derrotas
Em vitórias pervertidas
O gelo porém
Garantia a solidez
E a tua mentira viaja
Pela última vez
O gelo é o símbolo de quem o fez
E demonstra à saciedade
Que a incerteza cresceu
Para toda a humanidade
Mesmo
Para os que não acreditam
Na palavra sentida
Eis a emenda final
O gelo das calotes inglórias
Derrete
E é só o que promete

segunda-feira, 19 de abril de 2010

O Caos e a Mente (a Edward Lorenz)


O caos alimentou a tua mente
A tua mente nunca mergulhou no caos
Acreditavas que uma borboleta é gente
E que a borracha não podia vir só de Manaus
Garantiste que nada se pode prever
À distância de um segundo mais adiante
Só que os mercados continuaram a mentir
E os analistas de serviço pago e ignorante
A garantir que era teu, o desplante

Era estranho que as leis garantissem o desfecho
Era natural que nada se deixasse antever
Será que apenas te dedicaste da globalidade ao trecho
Onde o detalhe que inventaste
Não era a abertura mas o fecho?

Glória a Eduardo Lourenço
Já que na minha língua apaixonada
Edward Lorenz não é nada
Glória
Na imensa luz onde viveu
Que os que aqui ficamos
Só pensamos na modernidade
Onde já não existe o eu
(Escrito em 2008 aquando da morte de Edward Lorenz e publicado agora para saudar o artigo de Rui Tavares no Público de hoje, intitulado "Momento epictetiano" sobre "as coisas que não podemos controlar" )

sábado, 17 de abril de 2010

"Se possível que acabe em beijo"


Uma luz perniciosa
Atravessa a pradaria
O cowboy perfila-se soprando o cano
Da sua Winchester
Que ainda não disparou
Preparando-nos para o pior
“Tirem-me deste filme”
Grita um espectador
Cansado deste suspense já gasto
Por anos e anos de repetição
O cowboy porém
Atravessando a cena ameaçador
Fita de olhar cortante
A multidão
E dispara ao acaso
Ferindo em pleno coração
A rapariga
Que acabara de entrar
Alguns espectadores
Receosos e assolapados
Abandonam a sala
Não vá o cowboy
Continuar a disparar
Indiscriminadamente
Outros percebendo
Que se trata do mau da fita
Vão-se a ele
Valorosos e indignados
Consta que desapareceu
Sem deixar rasto
Como qualquer fantasma
Que se preza
Ou vilão
Que se alimenta da escuridão
A rapariga
Que ainda respirava
Pediu transferência
Para outra história
Mais romântica
“Se possível que acabe em be
ijo”
Explicou
Não fosse a semântica
Atraiçoar o desejo

quinta-feira, 15 de abril de 2010

Amanhã neste lugar vou plantar outro pomar...

A quem pertence
Este corpo?
De quem?
Quem aí vai?
Um ser que dizem
Foi um modelo de pai.
Onde pertencem as cinzas?
Minerais que se juntaram
Num projecto de consciência
Que vivazmente conjugaram.
De onde vieram as cinzas?
Do antigamente
Do longo momento
Que passou sem passar.
A quem deixar as cinzas?
A quem as quiser guardar.
O que fizeram das cinzas?
Ninguém tem contas a dar.
A quem pertenciam as cinzas?
Quais cinzas?
Amanhã
Neste lugar
Vou plantar
Outro pomar

domingo, 11 de abril de 2010

Não escrever?

Não escrever
Por ter a certeza
Que quando escreve
Já mente
Porque se retarda a síncope
Entre o pensamento
E a mão que se movimenta
Lenta, lenta, lenta…

Quando volta atrás para reescrever
Já pouco consta do original momento
Em que subitamente
Uma ou duas fusões de energia inteligível
Lhe tinham ditado uma sequência de palavras
Que agora esquece
Hesita
Lamenta a ideia que adormece
Fica assim numa angústia
De não vivência
De impermanência
Da impossibilidade sofista
De traduzir em tempo real
O que na sua memória acontece
Maravilhoso ou banal

O prazer da escrita
Dissipa-se
Num tom de desdita
De dizer algo
Que já não refere a realidade
Maquilhando a verdade
Que assim
Nunca é dita

sábado, 10 de abril de 2010

A vida contém a morte

A vida contém a morte
Nas suas vibrantes pulsações
Persistente
Habitamos um mundo de ilusões
De uma eterna realidade
Inexistente
Este labirinto
É a minha casa?
Enfrento zeloso
Esta solidão pungente?
Vivo um sonho esquisito
Até chegar à velha mesa
Agora só acredito
No que não vejo
Só na imaginação
Reside esta certeza
Nostalgia do futuro
Onde não vou viver
Regresso
Esperam-me ruínas?
E dessas paredes destroçadas
Conseguirei resgatar emoções?
Pelas frestas derrocadas
Ouvirei ainda os suspiros
Sem tempo
Ou será tarde demais?
E virei assistir
À total inquietação
Da memória insana
Que assim se esgota?
O céu está vermelho
Sinto-me à solta
Nesta história de memória
Que resiste absorta

sexta-feira, 9 de abril de 2010

Sunset não é o mesmo que Pôr-do-sol


I
Sunset não é o mesmo que Pôr-do-sol
Sunset é depois do sol da vida desaparecer
Sem fantasmas nem furores
Rosto que se desfaz em suores
Num ocaso com muita luz artificial
Sunset é plástico e nunca natural
É Boulevard como num filme
É vida que adormece
Na exaltação do ser
Que se esquece do que foi
E apodrece
Como uma carcaça qualquer
Algures em Terras de Bouro
Sunset comunica-se
Com trejeitos ou palavras de ouro
E a vida agonia-se

II
Pôr-do-sol presencia-se
Saboreia-se gota a gota
E deixa a esperança
Que da paisagem brota
Quando se espera
Que ainda nesta era
Amanheça de novo na nossa rota
E que depois o sol se ponha
Num desaparecer
Sem medo e sem vergonha

quinta-feira, 8 de abril de 2010

Olhamos o exterior

Olhamos o exterior
Adormecemos
Sono inocente
Sonho indecente
O momento desperta
Irrompe uma fonte
Algo se esfarrapa
Na tua fronte
Em flocos de neve
Que não conhecemos
Senão lá de fora
O amor já aqui esteve
Agora não sabemos
O que dizer
Abrimos os olhos
No silêncio da noite
Abraçamos escolhos
Assustados recitamos
Rupturas e salmos
Às vezes choramos
E as lágrimas só secam
Ao amanhecer
É então que nos olhamos
Não queremos esquecer
Onde regressamos
Quando anoitecer

quarta-feira, 7 de abril de 2010

Posso amar como Bécaud

Posso amar como Bécaud uma jovem russa
Numa praça vermelha que regurgite de bolcheviques
Retirados entretanto de circulação

Posso cantar como Brel uma indígena muda
De ilhas longínquas e ignorar os seus caciques
Ou os reis bruxos desse Butão

Posso beijar os campos onde os guetos proliferam
E não sentir o odor do sangue
Nem a maldição ou a maldade humana

Posso vender flores ao desbarato
Para que a todos calhe o seu quinhão
De beleza ou da simples ilusão que jana

Posso reiterar esforços e escamotear contrastes
Imaginar que a vida procura o equilíbrio
Quando já sei que este nunca será atingido

Posso dizer o que penso quando não sonho
Recitar as desilusões que a moral me incutiu
Imaginando que o Homem é tão só
Um um ser fruste e fugidio

Posso tudo o que quiser de peito aberto
Mas chegado o momento estou certo
As páginas voarão para um lugar desconhecido
O céu ficará sem cor
E o pensamento e a dor
Perderão para todo o sempre
O sentido

segunda-feira, 5 de abril de 2010

Palavras que inspiram (a Paz)

São sempre as palavras que inspiram
Menos as que vemos vibrar à nossa frente
Vê-las escritas
É uma forma diferente
Um acto diferido
Em forma de semente
Que talvez nunca seja devolvido
Quedando-se esquecido
Entre os papéis destinados a circular
Nas nossas mesas
De forma estranha e singular
Até que um dia
Emergem como por acaso
E deixamos escapar como um lamento
Esse estranho sentimento
De que passou o prazo
De que já foi há tanto tempo
Nem sabemos já se ainda vivem
As células que as marcaram
Depois passado um momento
Cairão numa estranha câmara lenta
Num cesto de papéis
Num último estado de indiferença
Antes de morrerem de morte natural
Como se fossem a verdade
Ou um misterioso chacal

sábado, 3 de abril de 2010

O silêncio da chuva

O silêncio da chuva
Congela o momento
Sem ti
Não me lembro
De me ter encontrado
Antes de te conhecer
Agora
Mesmo as palavras que magoam
Me faltam ao amanhecer
É então que um sol gélido
Confunde o meu dia
E me insinua
Que te devo esquecer

quarta-feira, 31 de março de 2010

Momentos sem espessura

Momentos sem espessura
Como um balão
Que se perde em altura
Existe e não se vê?
Viver é o quê?
Sinto no coração a ternura
E o batimento
Que ao momento me segura
Resume a consciência do vento
Que passa
O que é o tempo?
Corrente da consciência
Percepções que fixo em sequência?
Com os olhos fechados
Os sons adormecem os ânimos
Memórias condescendentes
Vivo uma vida imprecisa
Vazia
de antecedentes

segunda-feira, 29 de março de 2010

Vivo Primaveras antigas

Vivo primaveras antigas
Desabituado dos frios nocturnos
Das chuvas que amanhecem intempestivas
Flores que aparecem
Semeadas pelas mãos da beleza
Arbustos que regurgitam
De folhas verdes
Que inesperadamente os habitam
Sinto ao acordar
Um desejo inqualificável de sair
De me misturar com a natureza dos colibris
Saio nu de medos e gestos subtis
Só o sentimento de estertores
De gente sofrendo um vulcão
Me adormece a exaltação
Que no dia segreda e diz
Estás vivo e és feliz

domingo, 28 de março de 2010

A Noite e o Dia

Na noite
Não se esquece o dia
Dizem que duendes
Se divertem à nossa custa
À mesa de um cibercafé
Numa conversa vetusta
E a noite continua
Até que a aurora
Se anuncie e flua

No dia
Dissolve-se a noite
Breves instantes
Esgares incompreensíveis
Fantasmas que circulam devagar
Já sem o ritmo malfadado
Do seu teatro noctívago e insolente
A custo conseguimos acordar
O rosto reflectido no espelho
Da nossa consciência
Refazemos os gestos banais
Do amanhecer
Vacilamos
Respiramos fundo
E seguimos em frente
Ao encontro de um fecundo
E improvável presente

sábado, 27 de março de 2010

Em cada sessão uma nova história...

Em cada sessão
Uma nova história
Preenche a cidade

Na manhã seguinte
Nada na memória
Tem continuidade

Em todas as noites
Pode começar
Uma sessão contínua
Imprevisível saciedade
Pode ser mágica
Enquanto a seiva flua
Ou trágica
E deixar a heroína
Enregelada e nua

Quanto ao herói
Nada se diz no guião
Que assim se destrói
Em cada sessão

domingo, 21 de março de 2010

Prometo que me vou apaixonar

I
Prometo que me vou apaixonar
Amanhã de manhã
Pouco depois de o sol nascer

II
Se houver nuvens no céu
Será um esforço
Digno de Hércules

III
Em alternativa
Símbolo no seu apogeu
Um pensamento de Péricles

IV
É urgente
Que aconteça
Algo que não adormeça

A poesia emerge

A Poesia emerge
Enaltece um dia
Depois tudo se retrai
No rio procura
A palavra solta
Na beleza que aí vai

Portalegre,dia mundial da poesia, 2010

sexta-feira, 19 de março de 2010

Perguntas à Paz

Será que a paz te conduz
Ao silêncio que regenera?
Em mim oiço a voz que sofre
Invocando o deus que venera
Mas não consegue evitar
A disputa a morte vera
Mais forte que o balbuciar
Da criança que desespera
É este destino infiel
Que me arrasta para a fera
Terás o unguento o papel
Onde se escreve a direito?
Virá dos sonhos que vives
Um mundo quase perfeito?

domingo, 14 de março de 2010

A imperdoável canção

O erotismo
É quando o sexo escreve poemas
Quando o êxtase se confunde
Com enigmáticos fonemas
Ciciados ao ouvido
Do nosso encantamento
Por pouco não distinguimos
O vento nas dunas
E quase ignoramos
O areal sofrido
Onde espraiamos
O desejo agora incontido
Dizes palavras que não entendo
Falas como um anjo
Perdida no momento
Sem tempo
Este torpor nunca mais acaba?
Estamos por fim na eternidade?
Que me importa acabar assim
Todas as outras mortes
Seriam intragáveis
Mas esta
Em pleno festim
Dizendo palavras incompreensíveis
Tão absurdas como as bocas vermelhas
Que nos beijavam
Sem nos conhecer
Só posso agradecer
Ao acaso
Em que não acredito
Ai de mim
Queria despertar
E regressar
Ao erotismo
Poema sem palavras
Gesto sem movimentos
Momento supremo
Só interrompido pela guilhotina
Que corta o mundo em dois
Para nos separar
Suspendendo a vida
Em honra da deusa antiga
Será preciso vingar a felicidade?
E o regresso é impossível
Depois de dobrar este cabo?
Êxtase aziago
Pulsão enganadora
Pensamos estar a coberto de um fim
Confundidos com as nuvens
De onde não podemos cair
E afinal é tudo ilusão
E não sabemos como sair
É então que percebemos
Que é só
Mais um dia que termina
Na nossa imaginação
E Eros que congemina
E encerra
Esta imperdoável canção

sexta-feira, 12 de março de 2010

Consciência do Ser

Vejo
Na matéria de que és feita
Germinar a flor de um corpo
Tomas o partido da alma
Iludes a realidade
Convocas a forma ideal
Para que à tua volta
Só vislumbrem fugaz a verdade

Penso
Na ilusão de que és feita
Mergulho num mundo absorto
Onde só a dor me acalma
E a ideia estranha de estar morto
Apaga a emoção e a chama
Para que à minha volta
Só respirem sagaz a verdade

Faço
Na vontade de que és feita
Vacilar a potência ideal
E num mundo absurdo e fatal
Incendeio uma réstia de esperança
Resisto à emergência do mal
Para que na próxima revolução
Só percebam vivaz a verdade

segunda-feira, 8 de março de 2010

Solvência do Ser


Vários pássaros
Debicavam o fim do dia
Num ar de catástrofe eminente
Afinal era só
O momento presente
Que se dissolvia
E a luz do poente
Que se reduzia
A uma espécie
De pó

quinta-feira, 4 de março de 2010

É no teu olhar que me reconheço...


“É no teu olhar
que me reconheço”
Disse-te um dia
Por isso agora
Que já não estás
Procuro nos espelhos
Antigos e difusos
Da casa vazia
Uma razão de ser
Para tudo isto
E sem querer
Olho
Não resisto
E vejo a clivagem
A portagem
De mundos esotéricos
Pensares profundos
E periféricos
Agonizantes
E porque não posso
Reviver-te como antes
O meu ser
Não é visto
E vivendo embora
Não existo

terça-feira, 2 de março de 2010

Chove uma maré antiga...


Chove uma maré antiga
Que a terra seca já esquecera
Abrindo as suas frestas par em par
Como uma virgem envelhecida
Por uma longa espera de cera
Chovem sobressaltos de vento
Que arrancam às árvores um lamento
E as fendas não se fecham
Ensopam-se na seiva do futuro
Reabrem-se num muro
Que deixam às portas da morte
Como a ânsia de desmoronar
O sol que já queimava
Planície e vale e serra e tudo
O momento agonizava
Nem a paixão do sol que imperava
Suportava agora o silêncio mudo
Da natureza que secava
Chove uma água bendita
Nas cidades
Falam dos inconvenientes
Nas aldeias
Noites trágicas são frequentes
Mas o coração que ama a vida
Exulta na tempestade
Como a paixão que sempre sente
O ser que revive a puberdade

segunda-feira, 1 de março de 2010

A hora da maresia

Faz-se uma base doce
Mistura-se com moderação
Deixa-se emergir numa nuvem de algodão
Ou transparente
Como num sonho
Que tudo reinvente
Espalha-se como o tédio
Pelas ombreiras das portas
E na falta de palavras mortas
Ou de janelas abertas
Por onde entrem
Ruas desertas
Procura-se insistentemente
Na boca sem pressa
O inferno dos lugares comuns
Mas é na sela do cavalo alado
Que se sente a emoção
Até ao nascer do dia
E então
É de novo
A hora da maresia
E os sonhos
Cavalgados no turbilhão
Da noite
Transformam-se nas palavras
Da poesia

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Dançar com os teus corpos

Dançar com os teus corpos
Imaginados
Bethânia a cantar
Beijar os teus lábios
No espaço projectados
Viver só e acompanhado
Porque os teus rostos
Estão sempre
Aqui ao lado
Envoltos em auras
Iluminados
Dançar com os teus corpos
Nus e vestidos
Enlaçados e contorcidos
Febrilmente
Apaixonadamente
Dançar com a memória

De ti

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Transition


Ni de la mort
La peur
Ni du lendemain
L´angoisse
Mais autre chose
Que la farce
La folie le délire
Un jet d´encre rouge
Sur un mur d´espace
Une poignée d´herbes noires
Sur un lac lasse
Des étranges foires
Des choses inutiles
Ou la mise a mort
Des toros séniles
Tout n´importe quoi
Qui s´explose en moi
Sans me faire tout dire
Car la vie subsiste
Et le monde existe
Quoi qu´il arrive à l´homme
Qui a encore faim
D´un nouveau lendemain
Même s´il est seul
Tous les bleus matins
Aimer sera l´esquisse
De dieu ou satan
Que le moment glisse
Qu´échue le temps
Ni de la mort
La peur
Ni du lendemain
L´angoisse
Mais autre chose
Que la farce

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Fim de dia no Alentejo


Cai o dia
Momento irrepetível
O sol e a lua em contraponto
O vermelho que beija o horizonte
A serra, o monte e mesmo a tua fronte
E o branco alvo que o abandona
Imita o uivo dos lobos distantes
E o voo dos morcegos que imagino
Oh! Se imagino

Cai o dia
E nesta turbulência
De silêncios entrecortados
As folhas inebriantes que nos rodeiam
Florescem na noite fria
Branca e fria como naquela matina
Em que te deste a sorrir
Bela e menina

Cai o dia
A noite avança
Numa escuridão que se avizinha
Céu estrelado
Vamos para outros mundos
De paixão
Homens alados
Surpreendidos pela beleza do Nada
Oh! Não, Verbo!
Suspende o vago
Que eu gosto muito de viver
Prefiro a emoção fervente de um beijo
Esfumando o horizonte
Que se apaga

Quanto ao dia
Que termina
É luz que não mais te afaga
Só resta no teu corpo
A memória do que no dia aconteceu
E assim, no sonho, acredito
O dia não morreu

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

As futilidades profundas


As futilidades profundas
Rasgam os céus
Dissolvem as nuvens
Em intensos carneirinhos
De algodão
Dobrar ou não dobrar um papel

Por uma questão de apresentação
Sonhar como quase todos sonham
Numa história de cordel
Que não avança nem atrasa
Mas que os põe em brasa
O mundo é uma emoção barata
É preciso é muita lata
Afinal na sua maioria
Filhos de manhosos investidores
De ares sofisticados ou mesmo doutores
Nem percebem do que se trata
Preenchem páginas abertas
Em forma de formulários repetitivos
Problemas como o dos relógios que se atrasam
(Já não se levam ao relojoeiro, os relógios
As profissões já não são o que eram dantes)
Sempre os mesmos aperitivos
E o mesmo uísque marado
Que infecta os neurónios
De cada momento mal passado
Prefiro o silêncio
Que dizem não se gasta
Ou o pensamento alado
Ao alcance de qualquer casta
Mesmo na indigna visão indiana
Que faz a lei em Madrasta
Onde se luta por acordar
Numa manhã qualquer
Sem o estômago colado às costas
Daria para perguntar
No meio de cheiros nauseabundos
Se eles, os vagabundos
Ou os outros de qualquer nome
Anseiam dobrar papéis antes de os ensacar
Na reciclagem ansiosa da sua fome?

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

Contigo queria ainda

Contigo queria ainda
Dançar o Tango em Buenos Aires
Onde o desemprego entristece e revolta

E o Samba no Rio
Onde também se ouve o estertor da fome
E a droga nunca se esgota

Dançar o Flamenco em Sevilha
Onde cantam ciganos como se morressem
E vivem felizes aparentemente

E a dança do ventre em Ismaília
Onde no entanto isso não se dança
E o desejo é sempre indecente

De novo o desejo de viver
Amando-te como anseias e o teu ser
Merece
Que é como quem recita
Um poema em forma de vida
E desvanece

Contigo queria ainda
Levar-te para a menina que encontrei
Numa curva da vida
Onde o desejo nos perdia
Animais selvagens
Da noite dia

Contigo queria ainda
Amar como se ama a vida
O Mar o Sol e o Universo
Contigo queria ainda
O Excesso

domingo, 14 de fevereiro de 2010

Já te escrevi palavras de amor...



I

Já te escrevi
Palavras do amor
Depois escondidas
Nos meandros da vida
Já me dedicaste poemas
Rasgados depois
Nas fúrias da noite
Já partilhamos
Momentos de sorte
Já vivemos acima
Das nossas vontades
Já fomos felizes
Já quisemos viver
Numa casa fechada
Onde nos fustigássemos
Na carne rasgada
Das alucinações
Já reclamamos a liberdade
Das nossas paixões
Já juramos nunca sobreviver
A estas estações
De amar e sofrer
E por vezes
Pensamos que o sonho
Era a única razão
Para o amor renascer

II

Já te escrevi palavras de amor
Já me dedicaste poemas
Agora
Ainda sem o saber
Temos os lemas
E três vidas
A resolver

sábado, 13 de fevereiro de 2010

Persistir


Persistir
Mesmo se a oração
Já não inspira
Frustrante
E o meu ser esvoaça
Contra um céu iníquo
Vazio até da águia errante

Assim já está bem?

Abro-te as pernas
Gentilmente
Envergonhada
Não cedes
Não queres pornografia
Entre nós
Afasto-me
Do triângulo do meu desejo
Equilátero
E no meu desequilíbrio
Nada vejo
Mas vislumbro o erotismo
Que cortejo
Assim já está bem?

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Horizontes

Olho o horizonte
Esbarro em paredes meias
Janelas abertas
Luzes intensas e desertas
Que cegam
Antes de deixar ver
Saio para a rua citadina
Raios de sol cortados
Em detalhes
Complicam a compreensão
Do todo
Subo a colina
Rodeado de electricidade
Nascente
De frenesi dolente
De objectos que não fazem parte
De nada
Subo ao mais alto monte
Que a natureza me concede
Onde o horizonte não se mede
Pela minha vista
Tantas cenas que não vejo
Dentro do meu ver
E depois tanto mundo
Para além deste máximo olhar
Onde nunca viverei
Tantos seres que morrem à luz do sol
Enquanto repouso calmamente
Tanto mundo que imagino
E desconheço
Tanto ser que vislumbro
E não reconheço
Ou nunca verei
Tanto espaço que acolho
À luz que lhe dá vida
E que nunca compreenderei
Encerrado num pequeno sargaço
Do tamanho de um quarto de hotel
Numa história de cordel
Olho o horizonte
Incapaz de o conhecer
Reduzo-me a uma ínfima espécie
E no entanto
Sem a luz
Não haveria nada
Nem saberia
Da cara esfacelada
Nem da dor enclausurada
Nem de tudo o que procuro
Ou que se produz
Nem da alegria
Que momentaneamente
Me seduz
Fico olhando a luz que navega
E que nesta escuridão
Me conduz
À vastidão que cega

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Amo as palavras

Amo as palavras
Que escreves com uma boca
Que não conheço
Amo as angústias que recitas
Com gestos que imagino
Quando adormeço
Amo quando dizes
Que não sabes se vives
Amo os teus silêncios
Em noites e dias
De alegorias
Amo as tuas ausências
O que nunca dirias
Amo a certeza
De que antigamente
Não existias

Tentativas do Ser

Quem tem cabeças abertas
Sem autorização de ninguém
Afirma que apesar de tudo
E da "grande confusão"
O homem é um ser com sorte
Consegue só percorrer
Sem destino e às vezes mudo
Um caminho até morrer
Dando-se ares de eleito
Aparências de perfeito
Enganando até o deus
Que inventou para se explicar
Da incoerência do Ser
Dos longos disfarces do Ter
Vive cansado do temor
De mundos que nunca existiram
Vive em profundo terror
Imagens que o confundiram
Afinal não vale a pena
Realçar o sofrimento
Neste breve súbito instante
Naquele impreciso momento
Tudo se dilui na confusão
E a chamada Existência
É apenas disfunção
(Reflexão sobre afirmações de Manuel Damásio que relatava as suas recentes conclusões sobre "o que vai no cérebro do homem")

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Declaração em nome dos mortais

Depois de algumas investigações

Nada parecidas com as policiais

Estou apto a fazer declarações

Que as faço em nome dos mortais

E por isso sem pejo nem hesitações

A vida é o sopro que agita o animal

Para que um ser esteja vivo

Isto é que tenha veemência e sal

É preciso que o coração bata e se repita

E que a repetição se faça para o bem e para o mal

Portanto não é no bater mecânico do coração

Que se define se tudo está conforme

Viver então começa por ser fome

Um grito de chamamento que ecoa

Pelas sombras

Ou até pelos corredores de um hospital

Depois vem da palpitação a consciência

E do bem e do mal a apetência

A fome de comida tudo justifica

Como aos animais

Mas o homem que eu concebo

Quer sempre mais

Na cabeça está alojado o infinito

Que às vezes se liberta sem saber

Gerando um frémito inaudito

De desejo de fazer e de prazer

E o dono destas ondas bem reais

Pode por vezes ganhar a liberdade

E sem controlo a mente não se esgota

Explode em grandezas sem cidade

E dum pequeno barco faz a frota

Com que vai querer arribar ao porto alto

Sempre mais alto que o porto que ontem foi

Como se o homem qual deus incauto

Não tivesse limites ou não os conhecesse

E portanto no infinito projectado

Só pode acabar ensimesmado

A dizer talvez num canto do universo

"Este desejo que vivo e que almejo

Não está finalmente ao meu alcance

Não quero da vida este relance

Nem viver como o comum dos mortais"

Partir é então o fatídico desígnio

Talvez na esperança que casa com a ignorância

De na poeira onde não reconhece identidade

Ter enfim garantida a eternidade

Como parar então esta amargura

Este anseio esta forma esta demissão

Porque todas as palavras conseguidas

Que se profiram com amabilidade ou com secura

Podem não ter a força e o lastro suficiente

Basta porém na mente

Manter-se impunemente

Esse desejo vital de fazer quase inconsciente

E nada mesmo nada

Conseguirá fazer-lhe frente

Talvez também

E é esse o meu anseio

Descendo da poesia

Caldeado com o prazer da maresia

Um braço caído sem força momentaneamente

Possa remeter em causa esta agonia

Sonhar de novo como se vivia antigamente

Quando a vida corria e se olhava cada presente

Como o bom que a vida conseguia

E o braço já não dormente se mova e diga

Que quer ser de novo da acção o leme

E da vida o símbolo que nunca treme

Aqui o momento geme

E a árvore se agita

E o homem renasce

Na sua bela desdita

domingo, 7 de fevereiro de 2010

La forme de l´autre...

Ils sont couchés
Sur un lit défait
Ses corps mélangés
Ont encore la forme de l´autre

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

ExisTenZ (Redux)

Nasces
Entre a dor e o júbilo
Como nos romances
Que retratam todos os mortais
Vives
Tentando chegar ao púlpito
Num movimento que te absorve
Como a outros heróis venais
Morres
Ainda à procura do amor
E do sentido da vida
Ou de alguns dos seus sinais

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

Todas as esperas são cinzentas

Todas as esperas
São cinzentas
Menos a que antecede
A tua chegada
Ainda não estás
Mas já se vislumbra
A aura que te precede
E mais nada

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Incógnita

Passeias incógnita
Nas curvas cintilantes
Da minha memória
Tanta luz que encandeia
O meu presente
Cinzento
Onde agora represento
Este papel inglório
De ídolo evanescente
De momento
Esbracejo como um náufrago
Combato a corrente