sexta-feira, 23 de abril de 2010

Loucura tomando conta do dia...

Acordei
Com uma espécie de loucura
Tomando conta do dia
Era a vida
Que mais uma vez
Me desiludia
Um homem passa a vida a conceber sonhos
De olhos bem abertos
Esperando que a luz que o toca
Seja garante de verdade
E afinal
É apenas uma claridade
Mitigada
Que paira dentro de si

Os valores e as definições
Estão sentados
Num canto da memória
Qual vulcão adormecido
Os seres imaginados
Circulam feitos deuses ou duendes
Comendo e bebendo
Com parcimónia e ao acaso
Daquela gamela de escória
Ou de ganga de ideais
Perfeitos ou malvados
Tomam conta da história
É aqui que começa
Esta espécie de loucura
Que acorda com o dia
Na nossa memória

terça-feira, 20 de abril de 2010

O gelo das calotes inglórias derrete

O gelo das calotes inglórias
Derrete
Enquanto te aproximas
Das escórias
Prometes
Continuar as obras desmedidas
E transformar as derrotas
Em vitórias pervertidas
O gelo porém
Garantia a solidez
E a tua mentira viaja
Pela última vez
O gelo é o símbolo de quem o fez
E demonstra à saciedade
Que a incerteza cresceu
Para toda a humanidade
Mesmo
Para os que não acreditam
Na palavra sentida
Eis a emenda final
O gelo das calotes inglórias
Derrete
E é só o que promete

segunda-feira, 19 de abril de 2010

O Caos e a Mente (a Edward Lorenz)


O caos alimentou a tua mente
A tua mente nunca mergulhou no caos
Acreditavas que uma borboleta é gente
E que a borracha não podia vir só de Manaus
Garantiste que nada se pode prever
À distância de um segundo mais adiante
Só que os mercados continuaram a mentir
E os analistas de serviço pago e ignorante
A garantir que era teu, o desplante

Era estranho que as leis garantissem o desfecho
Era natural que nada se deixasse antever
Será que apenas te dedicaste da globalidade ao trecho
Onde o detalhe que inventaste
Não era a abertura mas o fecho?

Glória a Eduardo Lourenço
Já que na minha língua apaixonada
Edward Lorenz não é nada
Glória
Na imensa luz onde viveu
Que os que aqui ficamos
Só pensamos na modernidade
Onde já não existe o eu
(Escrito em 2008 aquando da morte de Edward Lorenz e publicado agora para saudar o artigo de Rui Tavares no Público de hoje, intitulado "Momento epictetiano" sobre "as coisas que não podemos controlar" )

sábado, 17 de abril de 2010

"Se possível que acabe em beijo"


Uma luz perniciosa
Atravessa a pradaria
O cowboy perfila-se soprando o cano
Da sua Winchester
Que ainda não disparou
Preparando-nos para o pior
“Tirem-me deste filme”
Grita um espectador
Cansado deste suspense já gasto
Por anos e anos de repetição
O cowboy porém
Atravessando a cena ameaçador
Fita de olhar cortante
A multidão
E dispara ao acaso
Ferindo em pleno coração
A rapariga
Que acabara de entrar
Alguns espectadores
Receosos e assolapados
Abandonam a sala
Não vá o cowboy
Continuar a disparar
Indiscriminadamente
Outros percebendo
Que se trata do mau da fita
Vão-se a ele
Valorosos e indignados
Consta que desapareceu
Sem deixar rasto
Como qualquer fantasma
Que se preza
Ou vilão
Que se alimenta da escuridão
A rapariga
Que ainda respirava
Pediu transferência
Para outra história
Mais romântica
“Se possível que acabe em be
ijo”
Explicou
Não fosse a semântica
Atraiçoar o desejo

quinta-feira, 15 de abril de 2010

Amanhã neste lugar vou plantar outro pomar...

A quem pertence
Este corpo?
De quem?
Quem aí vai?
Um ser que dizem
Foi um modelo de pai.
Onde pertencem as cinzas?
Minerais que se juntaram
Num projecto de consciência
Que vivazmente conjugaram.
De onde vieram as cinzas?
Do antigamente
Do longo momento
Que passou sem passar.
A quem deixar as cinzas?
A quem as quiser guardar.
O que fizeram das cinzas?
Ninguém tem contas a dar.
A quem pertenciam as cinzas?
Quais cinzas?
Amanhã
Neste lugar
Vou plantar
Outro pomar

domingo, 11 de abril de 2010

Não escrever?

Não escrever
Por ter a certeza
Que quando escreve
Já mente
Porque se retarda a síncope
Entre o pensamento
E a mão que se movimenta
Lenta, lenta, lenta…

Quando volta atrás para reescrever
Já pouco consta do original momento
Em que subitamente
Uma ou duas fusões de energia inteligível
Lhe tinham ditado uma sequência de palavras
Que agora esquece
Hesita
Lamenta a ideia que adormece
Fica assim numa angústia
De não vivência
De impermanência
Da impossibilidade sofista
De traduzir em tempo real
O que na sua memória acontece
Maravilhoso ou banal

O prazer da escrita
Dissipa-se
Num tom de desdita
De dizer algo
Que já não refere a realidade
Maquilhando a verdade
Que assim
Nunca é dita

sábado, 10 de abril de 2010

A vida contém a morte

A vida contém a morte
Nas suas vibrantes pulsações
Persistente
Habitamos um mundo de ilusões
De uma eterna realidade
Inexistente
Este labirinto
É a minha casa?
Enfrento zeloso
Esta solidão pungente?
Vivo um sonho esquisito
Até chegar à velha mesa
Agora só acredito
No que não vejo
Só na imaginação
Reside esta certeza
Nostalgia do futuro
Onde não vou viver
Regresso
Esperam-me ruínas?
E dessas paredes destroçadas
Conseguirei resgatar emoções?
Pelas frestas derrocadas
Ouvirei ainda os suspiros
Sem tempo
Ou será tarde demais?
E virei assistir
À total inquietação
Da memória insana
Que assim se esgota?
O céu está vermelho
Sinto-me à solta
Nesta história de memória
Que resiste absorta

sexta-feira, 9 de abril de 2010

Sunset não é o mesmo que Pôr-do-sol


I
Sunset não é o mesmo que Pôr-do-sol
Sunset é depois do sol da vida desaparecer
Sem fantasmas nem furores
Rosto que se desfaz em suores
Num ocaso com muita luz artificial
Sunset é plástico e nunca natural
É Boulevard como num filme
É vida que adormece
Na exaltação do ser
Que se esquece do que foi
E apodrece
Como uma carcaça qualquer
Algures em Terras de Bouro
Sunset comunica-se
Com trejeitos ou palavras de ouro
E a vida agonia-se

II
Pôr-do-sol presencia-se
Saboreia-se gota a gota
E deixa a esperança
Que da paisagem brota
Quando se espera
Que ainda nesta era
Amanheça de novo na nossa rota
E que depois o sol se ponha
Num desaparecer
Sem medo e sem vergonha

quinta-feira, 8 de abril de 2010

Olhamos o exterior

Olhamos o exterior
Adormecemos
Sono inocente
Sonho indecente
O momento desperta
Irrompe uma fonte
Algo se esfarrapa
Na tua fronte
Em flocos de neve
Que não conhecemos
Senão lá de fora
O amor já aqui esteve
Agora não sabemos
O que dizer
Abrimos os olhos
No silêncio da noite
Abraçamos escolhos
Assustados recitamos
Rupturas e salmos
Às vezes choramos
E as lágrimas só secam
Ao amanhecer
É então que nos olhamos
Não queremos esquecer
Onde regressamos
Quando anoitecer

quarta-feira, 7 de abril de 2010

Posso amar como Bécaud

Posso amar como Bécaud uma jovem russa
Numa praça vermelha que regurgite de bolcheviques
Retirados entretanto de circulação

Posso cantar como Brel uma indígena muda
De ilhas longínquas e ignorar os seus caciques
Ou os reis bruxos desse Butão

Posso beijar os campos onde os guetos proliferam
E não sentir o odor do sangue
Nem a maldição ou a maldade humana

Posso vender flores ao desbarato
Para que a todos calhe o seu quinhão
De beleza ou da simples ilusão que jana

Posso reiterar esforços e escamotear contrastes
Imaginar que a vida procura o equilíbrio
Quando já sei que este nunca será atingido

Posso dizer o que penso quando não sonho
Recitar as desilusões que a moral me incutiu
Imaginando que o Homem é tão só
Um um ser fruste e fugidio

Posso tudo o que quiser de peito aberto
Mas chegado o momento estou certo
As páginas voarão para um lugar desconhecido
O céu ficará sem cor
E o pensamento e a dor
Perderão para todo o sempre
O sentido

segunda-feira, 5 de abril de 2010

Palavras que inspiram (a Paz)

São sempre as palavras que inspiram
Menos as que vemos vibrar à nossa frente
Vê-las escritas
É uma forma diferente
Um acto diferido
Em forma de semente
Que talvez nunca seja devolvido
Quedando-se esquecido
Entre os papéis destinados a circular
Nas nossas mesas
De forma estranha e singular
Até que um dia
Emergem como por acaso
E deixamos escapar como um lamento
Esse estranho sentimento
De que passou o prazo
De que já foi há tanto tempo
Nem sabemos já se ainda vivem
As células que as marcaram
Depois passado um momento
Cairão numa estranha câmara lenta
Num cesto de papéis
Num último estado de indiferença
Antes de morrerem de morte natural
Como se fossem a verdade
Ou um misterioso chacal

sábado, 3 de abril de 2010

O silêncio da chuva

O silêncio da chuva
Congela o momento
Sem ti
Não me lembro
De me ter encontrado
Antes de te conhecer
Agora
Mesmo as palavras que magoam
Me faltam ao amanhecer
É então que um sol gélido
Confunde o meu dia
E me insinua
Que te devo esquecer