sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Trazes contigo a evidência e a impostura...


Trazes contigo
A evidência e a impostura
De objectos e de fotografias
E na memória
Os embustes e as insinuações
De como passaram os dias
Ou morreram as pessoas
E se foram as paixões
Objectos que sobreviveram
A tantas desilusões
Trazes contigo milhares de recortes
De outras vidas que sonhaste viver
Imagens mergulhadas na tua mente
Inevitavelmente limitada
Onde queres que flua todo o universo
Só isso te deixa saciada
A tua existência porém
Pode enlouquecer num momento fugaz
E só a insistência prevalecer
De fazeres amor com qualquer sexo
Procurando nesse espasmo
O nexo
Para o nascer e para o morrer
E no orgasmo
A improvável coerência do ser

sábado, 6 de novembro de 2010

Separei-me do momento (pensando em Fernando Pessoa)

Separei-me do momento
Da sequência do que aconteceu
Do que teria feito
A memória de um dia habitual
Preferi a escrita
(a ideia que se imprime)
A reflexão
(a mente que se redime)
É então indiferente
Se o sol brilhou
Ou se choveu a cântaros no quintal
Ou se a meio da tarde
Me procuraste para fazer amor
Sequiosa e fatal
O que passou fora de mim
Neste dia não fui eu
Enquanto revolvia o já vivido
Consta que anoiteceu
Não lamento o dia perdido
Foi apenas um respirar inconsciente
E por isso decerto mais sentido
Que um outro qualquer
Separei-me do momento
Da sequência do que aconteceu
Não há mais nada a dizer
Agora já me sinto
De regresso
Ao meu antigo Eu
Mergulhado de novo no absinto
Que nunca conseguiu
Perceber em sequência
Como em cada dia
Se viveu

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Sweet Life



I
Vento que sopra talvez do mar
Ou de uma dobra da Natureza onde se esconde a felicidade
Calor ameno que chega para dar a sensação vital de ser
Memórias, memórias de aqui estar
Ou talvez em outro lugar onde nunca esteve
Mas onde sonhou amar
Ainda o amor como liana que o prende à vida
Mesmo quando não está presente ou apenas em esboço
Como uma imagem distante no fundo da página
Onde se escreve com as duas mãos
A direita que acaricia e a esquerda que segura
O sexo que volteia à procura do amplexo
Que amplifica o momento e o ser
Voraz ainda sempre
Como comandado geneticamente

II
Vento que sopra do mar
Talvez do mar
Felicidade que rodopia por um momento
Antes de tudo acalmar
E o banal de sempre voltar

III
Rodopia, rodopia, rodopia
Por um momento
Que vale pela eternidade
A que não pertence
É bom ser

IV
Vento que sopra do mar eterno
Momento que o envolve
Sereno

V
Grande como um deus
Vence a ambiguidade
O momento é seu
É feliz

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Um chá como quem adormece


Deste-me um chá e disseste
Adormece meu querido
Tens agora
Todo o tempo do mundo
Para descansar
Dessa incerteza de viver
Vou aqui ficar por ti
A respirar até que o pó se desvaneça
E perca a forma impúdica e quase demente
Que em ti soou

Meu amor ouvi dizer ainda
Como quem morre
Ao anoitecer
No chá duas folhas suspensas
Dispersas na impossibilidade de se encontrarem
Como nós quando vivíamos
A amargura de nada dizer
Sem tempo para declarações
Só nos gestos por vezes um lampejo
Do nosso desejo

É por isso que aqui fico ainda
Arrefecendo com o chá
Até que um último murmúrio em forma de fumo
Me deixe para se juntar à cremação
Que me dissipe totalmente
Ou melhor
Me leve para aquela franja do Universo
Onde possa viver eternamente
Amálgama de elementos
Que me acolherão
Como CO2, Mg ou H2O
Vá lá saber como se desenhou o paraíso
Sem pensamentos
Sem tormentos
Pó H2O Só