quarta-feira, 31 de março de 2010

Momentos sem espessura

Momentos sem espessura
Como um balão
Que se perde em altura
Existe e não se vê?
Viver é o quê?
Sinto no coração a ternura
E o batimento
Que ao momento me segura
Resume a consciência do vento
Que passa
O que é o tempo?
Corrente da consciência
Percepções que fixo em sequência?
Com os olhos fechados
Os sons adormecem os ânimos
Memórias condescendentes
Vivo uma vida imprecisa
Vazia
de antecedentes

segunda-feira, 29 de março de 2010

Vivo Primaveras antigas

Vivo primaveras antigas
Desabituado dos frios nocturnos
Das chuvas que amanhecem intempestivas
Flores que aparecem
Semeadas pelas mãos da beleza
Arbustos que regurgitam
De folhas verdes
Que inesperadamente os habitam
Sinto ao acordar
Um desejo inqualificável de sair
De me misturar com a natureza dos colibris
Saio nu de medos e gestos subtis
Só o sentimento de estertores
De gente sofrendo um vulcão
Me adormece a exaltação
Que no dia segreda e diz
Estás vivo e és feliz

domingo, 28 de março de 2010

A Noite e o Dia

Na noite
Não se esquece o dia
Dizem que duendes
Se divertem à nossa custa
À mesa de um cibercafé
Numa conversa vetusta
E a noite continua
Até que a aurora
Se anuncie e flua

No dia
Dissolve-se a noite
Breves instantes
Esgares incompreensíveis
Fantasmas que circulam devagar
Já sem o ritmo malfadado
Do seu teatro noctívago e insolente
A custo conseguimos acordar
O rosto reflectido no espelho
Da nossa consciência
Refazemos os gestos banais
Do amanhecer
Vacilamos
Respiramos fundo
E seguimos em frente
Ao encontro de um fecundo
E improvável presente

sábado, 27 de março de 2010

Em cada sessão uma nova história...

Em cada sessão
Uma nova história
Preenche a cidade

Na manhã seguinte
Nada na memória
Tem continuidade

Em todas as noites
Pode começar
Uma sessão contínua
Imprevisível saciedade
Pode ser mágica
Enquanto a seiva flua
Ou trágica
E deixar a heroína
Enregelada e nua

Quanto ao herói
Nada se diz no guião
Que assim se destrói
Em cada sessão

domingo, 21 de março de 2010

Prometo que me vou apaixonar

I
Prometo que me vou apaixonar
Amanhã de manhã
Pouco depois de o sol nascer

II
Se houver nuvens no céu
Será um esforço
Digno de Hércules

III
Em alternativa
Símbolo no seu apogeu
Um pensamento de Péricles

IV
É urgente
Que aconteça
Algo que não adormeça

A poesia emerge

A Poesia emerge
Enaltece um dia
Depois tudo se retrai
No rio procura
A palavra solta
Na beleza que aí vai

Portalegre,dia mundial da poesia, 2010

sexta-feira, 19 de março de 2010

Perguntas à Paz

Será que a paz te conduz
Ao silêncio que regenera?
Em mim oiço a voz que sofre
Invocando o deus que venera
Mas não consegue evitar
A disputa a morte vera
Mais forte que o balbuciar
Da criança que desespera
É este destino infiel
Que me arrasta para a fera
Terás o unguento o papel
Onde se escreve a direito?
Virá dos sonhos que vives
Um mundo quase perfeito?

domingo, 14 de março de 2010

A imperdoável canção

O erotismo
É quando o sexo escreve poemas
Quando o êxtase se confunde
Com enigmáticos fonemas
Ciciados ao ouvido
Do nosso encantamento
Por pouco não distinguimos
O vento nas dunas
E quase ignoramos
O areal sofrido
Onde espraiamos
O desejo agora incontido
Dizes palavras que não entendo
Falas como um anjo
Perdida no momento
Sem tempo
Este torpor nunca mais acaba?
Estamos por fim na eternidade?
Que me importa acabar assim
Todas as outras mortes
Seriam intragáveis
Mas esta
Em pleno festim
Dizendo palavras incompreensíveis
Tão absurdas como as bocas vermelhas
Que nos beijavam
Sem nos conhecer
Só posso agradecer
Ao acaso
Em que não acredito
Ai de mim
Queria despertar
E regressar
Ao erotismo
Poema sem palavras
Gesto sem movimentos
Momento supremo
Só interrompido pela guilhotina
Que corta o mundo em dois
Para nos separar
Suspendendo a vida
Em honra da deusa antiga
Será preciso vingar a felicidade?
E o regresso é impossível
Depois de dobrar este cabo?
Êxtase aziago
Pulsão enganadora
Pensamos estar a coberto de um fim
Confundidos com as nuvens
De onde não podemos cair
E afinal é tudo ilusão
E não sabemos como sair
É então que percebemos
Que é só
Mais um dia que termina
Na nossa imaginação
E Eros que congemina
E encerra
Esta imperdoável canção

sexta-feira, 12 de março de 2010

Consciência do Ser

Vejo
Na matéria de que és feita
Germinar a flor de um corpo
Tomas o partido da alma
Iludes a realidade
Convocas a forma ideal
Para que à tua volta
Só vislumbrem fugaz a verdade

Penso
Na ilusão de que és feita
Mergulho num mundo absorto
Onde só a dor me acalma
E a ideia estranha de estar morto
Apaga a emoção e a chama
Para que à minha volta
Só respirem sagaz a verdade

Faço
Na vontade de que és feita
Vacilar a potência ideal
E num mundo absurdo e fatal
Incendeio uma réstia de esperança
Resisto à emergência do mal
Para que na próxima revolução
Só percebam vivaz a verdade

segunda-feira, 8 de março de 2010

Solvência do Ser


Vários pássaros
Debicavam o fim do dia
Num ar de catástrofe eminente
Afinal era só
O momento presente
Que se dissolvia
E a luz do poente
Que se reduzia
A uma espécie
De pó

quinta-feira, 4 de março de 2010

É no teu olhar que me reconheço...


“É no teu olhar
que me reconheço”
Disse-te um dia
Por isso agora
Que já não estás
Procuro nos espelhos
Antigos e difusos
Da casa vazia
Uma razão de ser
Para tudo isto
E sem querer
Olho
Não resisto
E vejo a clivagem
A portagem
De mundos esotéricos
Pensares profundos
E periféricos
Agonizantes
E porque não posso
Reviver-te como antes
O meu ser
Não é visto
E vivendo embora
Não existo

terça-feira, 2 de março de 2010

Chove uma maré antiga...


Chove uma maré antiga
Que a terra seca já esquecera
Abrindo as suas frestas par em par
Como uma virgem envelhecida
Por uma longa espera de cera
Chovem sobressaltos de vento
Que arrancam às árvores um lamento
E as fendas não se fecham
Ensopam-se na seiva do futuro
Reabrem-se num muro
Que deixam às portas da morte
Como a ânsia de desmoronar
O sol que já queimava
Planície e vale e serra e tudo
O momento agonizava
Nem a paixão do sol que imperava
Suportava agora o silêncio mudo
Da natureza que secava
Chove uma água bendita
Nas cidades
Falam dos inconvenientes
Nas aldeias
Noites trágicas são frequentes
Mas o coração que ama a vida
Exulta na tempestade
Como a paixão que sempre sente
O ser que revive a puberdade

segunda-feira, 1 de março de 2010

A hora da maresia

Faz-se uma base doce
Mistura-se com moderação
Deixa-se emergir numa nuvem de algodão
Ou transparente
Como num sonho
Que tudo reinvente
Espalha-se como o tédio
Pelas ombreiras das portas
E na falta de palavras mortas
Ou de janelas abertas
Por onde entrem
Ruas desertas
Procura-se insistentemente
Na boca sem pressa
O inferno dos lugares comuns
Mas é na sela do cavalo alado
Que se sente a emoção
Até ao nascer do dia
E então
É de novo
A hora da maresia
E os sonhos
Cavalgados no turbilhão
Da noite
Transformam-se nas palavras
Da poesia