quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Esquecimento, Esperança, Sonho

I- O Esquecimento

Viajo para longe
Sem gente
E nesse mundo vazio
Dolente
Esqueço o passado
Intensifico o presente
Estou numa praia como esta
Onde repousam dias antigos
Ao sol
Quero esquecer-me ao sol
Do mundo agora mudo
E numa praia como esta
Frente a um lago incandescente
Rolar como um seixo perfeito
Como uma figura embriagada
Talvez pela maresia
E na luz filtrada
Adormecer até ao fim do dia

II - A esperança

Ao anoitecer
Esperarei desesperadamente
Por um rosto alado
Que regresse do futuro
E se espalhe pelo mar
Onde brilhará então
Uma lua de encantar
E numa praia como esta
Poderei acreditar na giesta
No pulsar de um coração
No emergir de uma mão
Que me procure
E me segure
De novo à vida
Como uma vitória do amor
Sobre o estertor

III – O sonho

Numa praia como esta
Esqueço o passado
Intensifico o presente
E sonho
Que povoo o amanhecer
Com nova gente

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

"L´amour fou"


Lembras-te daquela última tarde
Silenciámos a vida à nossa volta
Tínhamos saudades um do outro
Marcamos um encontro
No vendaval mais próximo
Chegamos os dois mais cedo
Impelidos por um vento
Indomável e quase tóxico
Despimo-nos à velocidade do desejo
Como se não nos conhecêssemos
Ou fosse um primeiro ensejo
Gestos perturbados e escolhos
Esquecidos nos ombros das portas
Nas ancas redondas das cadeiras
Nos seios insolentes
Dos mármores e das madeiras
Detalhes rasgados por falta de tempo
Ou pela tentação que se apoderou de nós
Como se não estivéssemos sós
O murmúrio dos beijos
Os gritos do bel-prazer
O ritmo e a voracidade
O desejo de quem tem
Pela primeira vez à sua frente
O maior momento do mundo
Ou se despede da vida
Horas a viver sem fundo
Saímos para adormecer
Acordámos ao anoitecer
Para festejar ainda
A vitória insuperável
De estarmos de novo juntos
E de a nada obedecer

domingo, 12 de setembro de 2010

Se eu mandasse no mundo inteiro...

Se eu mandasse
Não nos homens mas no mundo inteiro
Voaria para as Áfricas insolventes
E faria brotar um maná inesgotável
Que debelasse as fomes insolentes
O mundo seria assim um paraíso
Sem prejuízo
Do homem ir além da Taprobana
Ou de fazer amor na praia
Em Copacabana
Se eu mandasse
Não nos homens mas no mundo inteiro
Libertaria os melros das amarras
E as limas gotejariam seus aromas
Sobre bebidas azuis e fumegantes
Como dantes
Se eu mandasse
Não nos homens mas no mundo inteiro
Faria projectar raios de luar
Sobre os campos de batalha inflamados
Congelaria ódios e despeitos
Transformando injustos e injustiçados
Em novos seres quase perfeitos
Se eu mandasse
Não nos homens mas no mundo inteiro
Seria o deus imaginado
Que faria do universo
Um eterno sorriso iluminado

terça-feira, 7 de setembro de 2010

Voltamos ao deserto...

Três dias
E outras noites
Voltamos ao deserto à procura
Do que resta de nós
Do que nunca foi trocado
Ou reconhecido
Nada fazia sentido
Só memórias escondidas
Desejos enclausurados
Vibrações inaudíveis
Mesmo aos ouvidos das emoções vividas
Tudo o que até hoje não dissemos
Que podia ter sido escutado
Proclamado soçobrado
Ou recomeçado
De comum acordo
Ou tácito enlevo
Nem te dei
Nem levo
Três dias
E outras noites
Sentimo-nos depois perdidos
À espera ainda do reencontro
De palavras desconhecidas
Talvez pronunciadas
Pelas nossas bocas
Em momentos diferentes
Não sincronizados
Rapidamente apagados
Para que não constassem
Nunca mais
Três dias
E outras noites
Perdidas a repetir o que já sabíamos
Um do outro
Mesmo o escorpião absorto
Não mexeu um grão
De areia
O momento foi assim
Declarado
Praticamente morto

sábado, 4 de setembro de 2010

Que suavidade mórbida

Que suavidade mórbida
Quando amanhece
Neste murmúrio silencioso
Do ano a dealbar
Não há palavras
Para te convocar
Nem espero que fales
Em teus contornos imaginados
Amanhã
Sei que bastará um olhar
Para te reencontrar
Mais tarde
Viverei o que pensas
Agora
Não fales por favor
Assim poderei acordar
Na visão obsessiva da vida
Onde impera zeloso o amor

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

Isabel, nos anos oitenta...


I
Isabel eras um mito
Vindo do outro lado da vida
Pacote de Winston na mão
Olhar distante
Ou desinteresse
A tua mão era macia

II
Isabel eras o silêncio
Objecto sexual “perhaps”
Passiva como um pássaro apaixonado
O sorriso esbatia-se
Contra as luzes apagadas
Luzes acesas, Luzes apagadas
Esbatia-se
O teu braço era macio

III
Isabel eras uma criança
Os dedos roídos pela impaciência
Saiote branco e folhos
E rendas
A tua vida
Um pouco da tua vida
Eras um Zé
Um amor calculado
Ou desinteressado
Eras o quê
A tua boca era romã
O teu sorriso triste
Eras o mundo à nossa volta

IV
Isabel eras convencional
A tua casa ainda não estava pronta
Móveis melhores, móveis novos
Amanhã tens que ir buscar a tua filha
Eras mãe, eras esposa
O fim
Eras o fim da noite
Pedias desculpa
Nem sei porquê

V
Isabel eras um whisky
Com duas pedras de gelo
Os Beatles
O teu presente
O teu futuro
Um dia deixarás de ser bela
Sê formiga, sou cigarra
Eras a rainha
Com um sorriso triste
Devassada
Eras uma rainha
Quem te conhece
Jura que o fazes muito bem
Eras um impasse
Uma incerteza
Um objecto
A tua vida parecia ser
O prazer dos outros
Por amor
É o amor que te interessa
O amor ou o sexo?
Não sabes do que falas
Tens praticado em demasia
Nem uma só vez
Falaste da cor do mar
Ou do ritmo das ondas

VI
Isabel eras o erotismo
Os seios recortando-se
No azul vermelho da sala
Enchias a noite de sonhos
Sem tempo
Teus lábios eram de facto romãs
Teu corpo era de facto macio
Onde te colava os lábios
Nasciam flores
Quando te fitava os olhos
Brilhavam estrelas
Quando te apertava os seios
Corriam rios
Percorria-te com os olhos cerrados
Como se fosses
O meu caminho habitual

VII
Isabel, nos anos oitenta
Era normal

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

E no entanto vivemos...

Escreves
O que te ditam sonhos multicolores
Publicas
Por canais azuis
Calmos ou trepidantes
Ou simplesmente
Em folhas de papel como dantes
Ninguém te conhece
(os que se lembram de ti não sabem quanto mudaste
nem te reconheceriam em nenhuma circunstância)
Um dia
Deixas de escrever
(Essa forma de respirar sempre ofegante)
Quantos seres perguntarão por ti?
Alguma célula fora do teu corpo
Se agitará de per si?
Não nascemos para sermos reconhecidos
Nem aos nossos próprios olhos
E no entanto vivemos
Oh! Se vivemos...

Nas margens frescas do Outono



O Verão grita sem cessar
Ecoando pelos corredores
Azuis e silenciosos
Da minha tristeza camuflada
Esgravato com denodo os odores
Dos momentos quase felizes
De que me esquecera
Cavalgo nos sonhos inquietos
Antes de cair desamparado na verdade
Passara uma década boçal e imperfeita
Debaixo de um céu infinito
Que ignora a dura realidade
Inicío então aquela sede mortífera
No último deserto onde o novo
Já não aflora na natureza prolífera
E no entanto
Os ventos cálidos do Verão
Pareciam apaziguadores das doenças da vida
Morava agora com vistas para o mar
Mesmo se só vislumbrava a planície verdejante
De um Alentejo alto e de abrasar
Podia baixar as gelosias ao nascer do sol
E acorrer horas mais tarde
Ao convite escaldante do entardecer
Tinha chegado a imaginar um paraíso terminal
Onde os abraços me defendessem do mal
E os beijos espaçados mas sinceros
Ecoassem como pássaros
Nas noites de gestos impropérios
Mas a palavra da verdade era estridente
Não perdoava na sua firmeza prepotente
Percebo que já não terei uma lua de papel
Nem das abelhas o seu glorioso mel
O Verão grita sem cessar
É preciso resistir
Até uma rã coaxar
Nas margens frescas do Outono
Para então recomeçar
Uma nova esperança sem dono