quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

SEMPRE DIFERENTE


Hoje o dia amanheceu como qualquer outro dia
Reparei que o jardim estava cinzento
O que não é habitual neste jardim
Então por isso
O dia não amanheceu como qualquer outro dia
Também a música da manhã
Celebrava a morte de Mozart abria com o “Requiem”
Sentia na jugular que o coração batia
A manhã, vendo bem
Não era igual a tantas outras
Depois dizem-me da morte de Joaquim Benite
Tristeza enquanto pensava no Teatro de Almada onde ia há anos
A manhã
Diferente de todas as outras
Única
 
Como todas as manhãs do mundo
Nada se repete
Por muito que o dia pareça amanhecer como qualquer outro dia
Hoje
 
Pela manhã
O jardim estava cinzento
O “Requiem” de Mozart jugulava o meu sentimento
Joaquim Benite nunca mais iria encenar no Teatro de Almada
O dia estava diferente de qualquer outro
Uma suave sensação 
de Nada

quarta-feira, 22 de agosto de 2012

Serenidade


Hoje adormeceste e quase sonhaste
A manhã irrompeu azul na tua fronte impura
Não estavas preparado para a antevisão difusa do amanhecer
Os teus olhos fecharam-se
Na tua mente
Martelos bigornas e outros artefactos
Esperaram pacientemente
A sua oportunidade
Eras um ser vivo que não sente
Abraçando os meandros da serenidade

terça-feira, 31 de julho de 2012

Olhar


No interior do teu olhar
Num rasgo de memória
Guardas a luz que o atravessa
Emoções, mentiras que percebeste, verdades contidas, palavras desabridas que guardaste na antecâmara da voz, alguns traços largos da vida, croquis, esboços, perceções ligeiras e outras suavidades
No interior do teu olhar
Num rasgo de memória
Onde a tua cidade se confessa

sábado, 19 de maio de 2012

Vermelho ao entardecer...


Há aquele azul esverdeado
Ou era apenas um azul confuso fundido num mar salgado?
Depois ao fundo de mim mesmo
Vermelhos que entardeciam
Outras cores, que agora me esquecem
Ou de que me lembro mas não sei como contar
Sem asas sem barco sem pena sem forma de viajar
Ou de escrever
Sei que havia aquele azul esverdeado
Em forma de momento
E o vermelho ao entardecer

terça-feira, 15 de maio de 2012

Despertar


Oh! Que gelo a terra onde desperto


Oh! Que fria a palavra que se ouve ao amanhecer


Oh! Que sólida respiração de notícias do deserto


Oh! Que primeira hesitação na vontade de nascer





quarta-feira, 9 de maio de 2012

Sabes, o pó não será fino...


Sabes,
O pó não será fino
Terá grãos alucinados de partículas sobreviventes
Onde te conheci
Outros, onde te amei
Serão estruturas coloridas
Vibrando sobre os cinzentos
Das coisas sofridas
Nenhuma mó de nenhum moinho
De nenhuma cidade de vento
Conseguirá reduzir a fumo
O inusitado sentimento
De nossos braços em assédio e movimento
O pó não será fino
Terá grãos alucinados de partículas sobreviventes
Onde te conheci

sexta-feira, 4 de maio de 2012

Intermezzo na tua condição...


Intermezzo!
É apenas uma interjeição receosa
Que te surpreende no espaço
Onde tudo regressa
Na sua forma vagarosa?
Ou nessa crescente palavra que em ti se confessa
Há agora uma certeza em suspensão
Uma dúvida metódica sobre o ser
E a sua condição?
É a banalidade o vício de forma da virtude
Ou a sua execução?
Podes voar sem olhar, sem garantir
A delicada compreensão?
Ou riscos e angústias
Podem esperar-te em cada imaginada estação?
Queres repousar com as tuas dúvidas
Adornado das tuas fraquezas
Sem esperar nem pedir nenhum perdão
Não te podes submeter
A nenhuma moral que apodreça na tua mão
Porque é dessa impune subtileza
Que depende complicada
A tua condição
E a liberdade te concede
A sua dignidade
A vida a sua beleza
E o momento a sua verdade

quinta-feira, 3 de maio de 2012

A suavidade do amor que tudo justifica...


A água corre misteriosa
A ponte contempla a água
A boca bebe a água sequiosa
A dor intensa deixa-se levar pela água
A água lava as feridas e purifica os sentidos
Sob a ponte canta
E vai com a corrente até aos teus ouvidos
Dizer-te
Que tudo continua bem neste continente
Que os nossos amanhãs soam agora a canções de guerra
E a poemas de insubmissão
Mas que juramos não esquecer
Seja qual for a força do furacão
A suavidade do amor
Que tudo encerra
Que tudo justifica
Que repousa intocável
Na tua e na minha mão

segunda-feira, 23 de abril de 2012

Pode ser que um mar como um espelho...


Pode ser um mar como um espelho
Ou um rio como um rasgo de desejo
Ou uma canção empolgante como um beijo
Pode ser que apenas oiça uns versos desgarrados
De uma antiga prédica tumultuosa
Que me fez sofrer um dia
Pode ser que tenha que esperar
Pelo amanhecer
Para que o vento na amurada do navio
Me traga as palavras
Os murmúrios
Desfaça as vozes intrigantes
Que sem querer
Me enchiam as horas de esquecimento
De mim
Pode ser que o fogo se extinga
Que faça frio mesmo se lá fora a primavera
Pode ser
Que o contador inexorável marque
Tique-taque, tique-taque, tique-taque
Ao ritmo do coração
Pode ser que tudo esteja a terminar
Como o dia
Afinal que sentido para o que não se lembra?
Pode ser que tudo não passe de um sonho
Que um cão ladre ou que um gato grite
Pode ser que seja eu
Apenas eu
Que sem querer
Me agite
Pode ser isso
Pode ser outra coisa
Que agora se resolve
Quando eu adormecer
Essa forma suave e espessa de quase morrer

sexta-feira, 20 de abril de 2012

Inclino-me para o verbo...

Inclino-me para o verbo

Como para uma tábua de salvação

Há pássaros lá fora

Viajando em seus destinos circundantes

Há flores que crescem e apodrecem a toda a hora

Há seres

De todas as espécies onde a existência mora

Inclino-me para o verbo

Peço ao sol mais luz intemporal

E à chuva uma tempestade na proa do vento

Que agite os meus demónios

E liberte meus anjos

Do seu trânsito sem destino

Viajamos nesta nave espacial que por vezes abomino

Porque me leva até à ignorância de mim mesmo

Àquele limiar

Onde a faca corta o cordão

Umbilical

E um homem fica assim desnudo

De corpo e alma

Nesse desejo de viver quase imortal

Inclino-me para o verbo

Como forma de sobreviver

A todo o mal

terça-feira, 20 de março de 2012

Oiço as tuas palavras como quem escuta uma oração

Oiço as tuas palavras como quem escuta uma oração
A um deus desconhecido
Falas de poesia e de como amas as palavras
E o seu sentido
Que por vezes são só sonoridades que depreendes
E que preferes os sons que encantam a tudo o mais

(um pássaro passou por nós arrastado pelo vento num choro convulsivo folhas muitas folhas cobriam o dia de inverno e depois aquela canção ao longe como num filme de Almodôvar não querias que falasse porque assim pareceria real nem o olhar podia levantar como se uma vergonha ignara me possuísse e o momento fosse exclusivamente teu e no entanto)

É de mim que falas nessa espécie de oração
Como aquele que te escreveu
A mais linda canção
Oiço

(o pássaro está caído coberto agora de folhas molhadas e vermelhas como são todas as folhas repartidas entre o outono e o inverno não se trata de nada triste mas apenas de uma realidade que se cruza com a nossa faço menção de falar a tua mão repousa sobre a minha boca com suavidade presumo que queres que cale a minha ansiedade essa espécie de angústia de viver que aflora em momentos como este e no entanto)

É para mim que falas nessa obstinada oração
Que não admite recusa
Ou timidez
És perentória como o são todas as certezas
Que a tua mente dita
Quando falas de nós
Ou é de mim que falas?
Oiço
O meu olhar perde-se na vastidão que cega
Crispam-se as mãos do imaginário
Que constróis à minha volta
Sinto-me de partida
Ou será que chego junto dos teus desejos
E lhes dou guarida?

(o pássaro ressuscita como num filme em que tudo se pode refazer as folhas colam-se umas às outras num corpo de letras dessincronizadas as que não têm lugar caem como cristais desocupados à espera do futuro para se juntarem na alegria de novas palavras para explicar as intensidades de sempre e no entanto)

Oiço as tuas palavras como quem escuta uma oração
A um deus desconhecido
Falas de poesia e de como amas as palavras
E o seu sentido
O dia rompe no nosso quarto
Na parede distingo agora o bem-te-vi
Que aqui deixaste para que te lembrasse em todas as estações
Sonhei que me falavas
E que um pássaro morreu
E que no nosso amanhecer ressuscitou
Acordei e tu não estavas
Mas algo de maravilhoso se passou
Ouvi as tuas palavras
Falavas de poesia
Mas era de mim que falavas
Nessa fusão que imaginas no começo de cada dia
Percebo que sobrevivi a mais uma noite em que não estavas

sexta-feira, 9 de março de 2012

Tocar a realidade

Sobre o desejo de “tocar a realidade” e a impossibilidade que antevejo

(enquanto decorria a conversa de Alexandra Lucas Coelho com Gonçalo M. Tavares na apresentação do livro “e a noite roda” - Bar da Barraca, 2012/03/07)


A realidade percebida aninha-se e adormece com os meus sentidos
Vai despertar quando menos for esperada
O que disser nesse momento
Será a verdade relatada
Oh! Mundo subjetivo!
Absoluta incapacidade de saber como existe
Teria bastado que um vulto passasse correndo
Que uma luz vinda de uma esquina
Que um balão festivo fluísse na sua bolina
Que umas mãos distraindo as minhas
Que uma quebra de energia fabricasse um apagão
Que um sentimento de perigo me alertasse
Que o amor estivesse ali ou não
Para que o momento se filtrasse
Para que eu já não soubesse do que falava
Para que não percebesse onde estava
Menos ainda o que naquele momento me faltava…

domingo, 5 de fevereiro de 2012

Momentos especialmente eróticos...

Não havia sinais de espécies animais em decadência
Nada preenchia os espaços
Entre as flores algumas viçosas
Os caules erectos deixavam adivinhar as coxas
Onde o prazer se realizaria a dois
Foram momentos eloquentes daqueles que não se repetem
Depois as águas subiram impiedosas até cobrirem tudo de silêncio

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Tempo de reflexão (enquanto ouvia o Requiem de Mozart também inacabado)

Há um tempo em que tudo parece insólito inacabado
E no entanto a memória transborda
De acontecimentos
Alguns fictícios
Outros apenas interpretações que por serem pessoais
Não representam toda a verdade
Ou simplesmente a verdade
Pensa que se dedica à fotografia para esconder a angústia que o assola
Enquanto o tempo passa
O tempo passa?
E o que é o tempo?
Apenas reconhece o bater do coração
Um batimento anterior ao outro
Entre eles
Tempo
Apercebe-se que vive num sistema de eixos a três dimensões
Trajectórias
Curvas
Ondulações
Desejos orientadores
Satisfações que se desfazem como ondas junto à praia
Perdeu muito tempo a indagar sobre muitos acontecimentos que não tinham nenhuma importância para a sua vida
Apenas toda a gente perguntava pelos mesmos
Obcecadamente
Levou tempo a perceber que devia abandonar o que os outros diziam que pensavam
Não estava aqui para esclarecer nada de nada
Não tinha nenhuma missão
A certa altura da sua existência podia ter enlouquecido
Tentando encontrar um motivo
Para o acordar cada manhã
Sem se lembrar do que tinha feito no dia anterior
(antes de adormecer entenda-se)
Dialogava com sonhos por vezes aterradores
Afundava-se
Via-se como um barco de papel à deriva
Vento soprava de um recanto
Era conduzido sem destino conhecido
Como se o percurso fosse o destino
Nada está determinado
Tudo o que acontece pode não acontecer
E se não houver espectadores
Podes dizer que não aconteceu que não é mentira
Mentira é quando todos vêem
Se convenceres alguns assistentes de que aquilo não aconteceu
Não mentes
É tudo uma extravagante imaginação
E depois nada disso tem importância
O importante é respirar
Comer
E as outras coisas que nos dão prazer
Rostos que se contorcem como garantia de que existes
Amo-te
Eu também
Queria que fosses minha
Voa voa minha bela andorinha
Por estas e por outras é que resolve ouvir o Requiem de Mozart
Saibam que na minha não ingerência no mundo dos que acreditam em deus
É este o meu Requiem preferido
Só para vos levantar o moral
Afinal estarão pensando que outro dia
Outra noite
Será a vossa vez
Estamos todos (mas todos)
No mesmo barco de papel
(Agora percebo porque o barco de papel se insinua nas minhas manhãs desérticas)
Hoje
Olho um livro inacabado
E adormeço
Num instante
Num breve instante
Sei que o Requiem continuará a tocar
E a fazer-se ouvir nas ondas do éter
Adoro dormir com música em fundo
Alimento o meu outro eu
O eterno
E preparo-o para a triste realidade
De que também ele
O eterno
Afinal
É efémero como a flor