terça-feira, 20 de março de 2012

Oiço as tuas palavras como quem escuta uma oração

Oiço as tuas palavras como quem escuta uma oração
A um deus desconhecido
Falas de poesia e de como amas as palavras
E o seu sentido
Que por vezes são só sonoridades que depreendes
E que preferes os sons que encantam a tudo o mais

(um pássaro passou por nós arrastado pelo vento num choro convulsivo folhas muitas folhas cobriam o dia de inverno e depois aquela canção ao longe como num filme de Almodôvar não querias que falasse porque assim pareceria real nem o olhar podia levantar como se uma vergonha ignara me possuísse e o momento fosse exclusivamente teu e no entanto)

É de mim que falas nessa espécie de oração
Como aquele que te escreveu
A mais linda canção
Oiço

(o pássaro está caído coberto agora de folhas molhadas e vermelhas como são todas as folhas repartidas entre o outono e o inverno não se trata de nada triste mas apenas de uma realidade que se cruza com a nossa faço menção de falar a tua mão repousa sobre a minha boca com suavidade presumo que queres que cale a minha ansiedade essa espécie de angústia de viver que aflora em momentos como este e no entanto)

É para mim que falas nessa obstinada oração
Que não admite recusa
Ou timidez
És perentória como o são todas as certezas
Que a tua mente dita
Quando falas de nós
Ou é de mim que falas?
Oiço
O meu olhar perde-se na vastidão que cega
Crispam-se as mãos do imaginário
Que constróis à minha volta
Sinto-me de partida
Ou será que chego junto dos teus desejos
E lhes dou guarida?

(o pássaro ressuscita como num filme em que tudo se pode refazer as folhas colam-se umas às outras num corpo de letras dessincronizadas as que não têm lugar caem como cristais desocupados à espera do futuro para se juntarem na alegria de novas palavras para explicar as intensidades de sempre e no entanto)

Oiço as tuas palavras como quem escuta uma oração
A um deus desconhecido
Falas de poesia e de como amas as palavras
E o seu sentido
O dia rompe no nosso quarto
Na parede distingo agora o bem-te-vi
Que aqui deixaste para que te lembrasse em todas as estações
Sonhei que me falavas
E que um pássaro morreu
E que no nosso amanhecer ressuscitou
Acordei e tu não estavas
Mas algo de maravilhoso se passou
Ouvi as tuas palavras
Falavas de poesia
Mas era de mim que falavas
Nessa fusão que imaginas no começo de cada dia
Percebo que sobrevivi a mais uma noite em que não estavas

sexta-feira, 9 de março de 2012

Tocar a realidade

Sobre o desejo de “tocar a realidade” e a impossibilidade que antevejo

(enquanto decorria a conversa de Alexandra Lucas Coelho com Gonçalo M. Tavares na apresentação do livro “e a noite roda” - Bar da Barraca, 2012/03/07)


A realidade percebida aninha-se e adormece com os meus sentidos
Vai despertar quando menos for esperada
O que disser nesse momento
Será a verdade relatada
Oh! Mundo subjetivo!
Absoluta incapacidade de saber como existe
Teria bastado que um vulto passasse correndo
Que uma luz vinda de uma esquina
Que um balão festivo fluísse na sua bolina
Que umas mãos distraindo as minhas
Que uma quebra de energia fabricasse um apagão
Que um sentimento de perigo me alertasse
Que o amor estivesse ali ou não
Para que o momento se filtrasse
Para que eu já não soubesse do que falava
Para que não percebesse onde estava
Menos ainda o que naquele momento me faltava…