"O Céu que nos Protege", de Paul Bowles
Gosto do livro muito por causa do filme de Bernardo Bertolucci. Há uma trilogia que define o livro e o filme: o desejo, o amor, a morte ou será apenas a existência vista por diferentes ângulos, em diferentes momentos culminantes da vida? Há anos, mais de uma década, encontrava-me em Grasse e por razões que aqui não detalho fui desembocar em casa de Jean-Baptiste Grenouille, um descendente do anti herói que Suskind retrata no seu livro "O Perfume". Conduzindo uma entrevista com tão misterioso como interessante personagem confrontei-me com a sua paixão por este filme. Pude então revê-lo algumas vezes e aprofundar os personagens e algumas cenas que me marcaram para sempre. Algumas situações encontro descritas no texto dessa entrevista...
"No ecrã uma figura que agora percebo ser muito parecida com Jean-Baptiste, bebe o seu chá de menta e fala: “Porque nem Kit nem Port tinham jamais vivido uma vida com um mínimo de regularidade, ambos cometiam o erro fatal de verem o tempo como algo de não existente; um ano era igual a qualquer outro e eventualmente tudo acabaria por acontecer”.
Estamos num café em Tanger, o filme é “Um chá no deserto”. Estranha coincidência, já vi este filme quatro vezes. Mas sinto-me disposto a vê-lo outra vez, sobretudo nesta instalação onde a excelente imagem conseguida por Vittorio Storaro atinge a excelência, melhor talvez até do que no cinema onde vi o filme as duas primeiras vezes."
E mais à frente na entrevista...
"Sirvo-me e saboreio um pouco de tudo enquanto o filme corre. De vez em quando olho o meu companheiro de sessão que não desvia o olhar do ecrã senão por breves instantes para pegar em pequenas quantidades de pão ou de queijo ou da beterraba cozida e temperada com alho, salsa e azeite que se encontra mais do seu lado. Parece ver o filme pela primeira vez, mas quase que iria garantir que se trata de algo que vê com frequência aparentemente com o mesmo interesse. E chegamos ao ponto culminante do filme: Kit e Port vão de bicicleta até uma pequena colina onde se sentam contemplando o deserto à sua frente. Parece-me interessante reproduzir o que Port diz olhando o espaço azul que aos nossos olhos parece ilimitado: “Aqui o céu é estranho, é quase sólido. É como se nos protegesse do que está por detrás. Vê! – E o que está por detrás? Pergunta Kit. – Nada, só a noite, responde Port.”
Neste momento Jean-Baptiste olha para mim como a certificar-se que estou a ouvir, como que a sublinhar que também ele sente assim. Não falamos. O filme continua sem interrupções e também nessa situação estamos de acordo. Ainda a cena do cemitério, Port já febril encontra-se com Kit que tinha saído à sua procura e caminham até perto de um cemitério. As campas têm pequenas pedras a assinalar a sua localização. Port chama a atenção de Kit: “Olha para estas campas, sem nomes, sem datas.” Nenhuma explicação. Apenas Kit ao deitar-se no chão perto de uma das campas e falando do futuro próximo e do que irão fazer a partir do dia seguinte nos dá a sensação de que talvez por uma primeira vez se apercebe de que este dia não vai ser como qualquer outro, o seu corpo sedutor em contraponto com a visão do cemitério, como que toca pela primeira o sentido da vida e também o da inexorável “ausência de vida”. O filme continua.
A morte de Port que afinal percebe que tinha vivido para ela desde há muito deixa Kit perdida, mais ainda do que já estaria. Vai vaguear pelo deserto na experiência de estar só e sem objetivos até que tentam recuperá-la para a vida mundana. Foge no último momento para o desconhecido não sem antes voltar ao Café de Argel onde tinha estado com Port e o amigo Turner aquando da chegada. Aí de novo a personagem que se assemelha a Jean-Baptiste (será Paul Bowles?) pergunta: “Está perdida?” – “Sim”, responde (única cena do filme que me parece desnecessária). E depois como conclusão, a voz, o rosto que fala:
“Por não sabermos quando vamos morrer vemos a vida como uma fonte inesgotável. E no entanto tudo acontece apenas um certo número de vezes. Aliás, um número muito reduzido de vezes.
Em quantas ocasiões recordaremos uma certa tarde da nossa infância, uma tarde tão profundamente parte do nosso ser que nem concebemos a nossa vida sem ela? Talvez mais umas quatro ou cinco vezes, talvez nem sequer tantas. Quantas mais vezes veremos despontar a lua cheia? Talvez vinte. E no entanto, tudo parece ilimitado.”
O genérico que passa até ao fim traz-nos de novo à realidade."Cinema e Literatura são complementares ou duas entidades artísticas diferentes? Uma conversa para outra ocasião...
Franco José, Ramada, 31 de julho de 2018