quinta-feira, 31 de julho de 2025

 

"O Céu que nos Protege", de Paul Bowles

Gosto do livro muito por causa do filme de Bernardo Bertolucci. Há uma trilogia que define o livro e o filme: o desejo, o amor, a morte ou será apenas a existência vista por diferentes ângulos, em diferentes momentos culminantes da vida? Há anos, mais de uma década, encontrava-me em Grasse e por razões que aqui não detalho fui desembocar em casa de Jean-Baptiste Grenouille, um descendente do anti herói que Suskind retrata no seu livro "O Perfume". Conduzindo uma entrevista com tão misterioso como interessante personagem confrontei-me com a sua paixão por este filme. Pude então revê-lo algumas vezes e aprofundar os personagens e algumas cenas que me marcaram para sempre. Algumas situações encontro descritas no texto dessa entrevista...

"No ecrã uma figura que agora percebo ser muito parecida com Jean-Baptiste, bebe o seu chá de menta e fala: “Porque nem Kit nem Port tinham jamais vivido uma vida com um mínimo de regularidade, ambos cometiam o erro fatal de verem o tempo como algo de não existente; um ano era igual a qualquer outro e eventualmente tudo acabaria por acontecer”.

Estamos num café em Tanger, o filme é “Um chá no deserto”. Estranha coincidência, já vi este filme quatro vezes. Mas sinto-me disposto a vê-lo outra vez, sobretudo nesta instalação onde a excelente imagem conseguida por Vittorio Storaro atinge a excelência, melhor talvez até do que no cinema onde vi o filme as duas primeiras vezes."

E mais à frente na entrevista...

"Sirvo-me e saboreio um pouco de tudo enquanto o filme corre. De vez em quando olho o meu companheiro de sessão que não desvia o olhar do ecrã senão por breves instantes para pegar em pequenas quantidades de pão ou de queijo ou da beterraba cozida e temperada com alho, salsa e azeite que se encontra mais do seu lado. Parece ver o filme pela primeira vez, mas quase que iria garantir que se trata de algo que vê com frequência aparentemente com o mesmo interesse. E chegamos ao ponto culminante do filme: Kit e Port vão de bicicleta até uma pequena colina onde se sentam contemplando o deserto à sua frente. Parece-me interessante reproduzir o que Port diz olhando o espaço azul que aos nossos olhos parece ilimitado: “Aqui o céu é estranho, é quase sólido. É como se nos protegesse do que está por detrás. Vê! – E o que está por detrás? Pergunta Kit. – Nada, só a noite, responde Port.”

Neste momento Jean-Baptiste olha para mim como a certificar-se que estou a ouvir, como que a sublinhar que também ele sente assim. Não falamos. O filme continua sem interrupções e também nessa situação estamos de acordo. Ainda a cena do cemitério, Port já febril encontra-se com Kit que tinha saído à sua procura e caminham até perto de um cemitério. As campas têm pequenas pedras a assinalar a sua localização. Port chama a atenção de Kit: “Olha para estas campas, sem nomes, sem datas.” Nenhuma explicação. Apenas Kit ao deitar-se no chão perto de uma das campas e falando do futuro próximo e do que irão fazer a partir do dia seguinte nos dá a sensação de que talvez por uma primeira vez se apercebe de que este dia não vai ser como qualquer outro, o seu corpo sedutor em contraponto com a visão do cemitério, como que toca pela primeira o sentido da vida e também o da inexorável “ausência de vida”. O filme continua.

A morte de Port que afinal percebe que tinha vivido para ela desde há muito deixa Kit perdida, mais ainda do que já estaria. Vai vaguear pelo deserto na experiência de estar só e sem objetivos até que tentam recuperá-la para a vida mundana. Foge no último momento para o desconhecido não sem antes voltar ao Café de Argel onde tinha estado com Port e o amigo Turner aquando da chegada. Aí de novo a personagem que se assemelha a Jean-Baptiste (será Paul Bowles?) pergunta: “Está perdida?” – “Sim”, responde (única cena do filme que me parece desnecessária). E depois como conclusão, a voz, o rosto que fala:

Por não sabermos quando vamos morrer vemos a vida como uma fonte inesgotável. E no entanto tudo acontece apenas um certo número de vezes. Aliás, um número muito reduzido de vezes.

Em quantas ocasiões recordaremos uma certa tarde da nossa infância, uma tarde tão profundamente parte do nosso ser que nem concebemos a nossa vida sem ela? Talvez mais umas quatro ou cinco vezes, talvez nem sequer tantas. Quantas mais vezes veremos despontar a lua cheia? Talvez vinte. E no entanto, tudo parece ilimitado.”

O genérico que passa até ao fim traz-nos de novo à realidade."Cinema e Literatura são complementares ou duas entidades artísticas diferentes? Uma conversa para outra ocasião...

Franco José, Ramada, 31 de julho de 2018

quarta-feira, 25 de setembro de 2013

Pergunta sobre a Sinfonia Universal


Ao princípio os elementos eram inertes e sólidos
E cinzento o recanto onde a água congelou
Depois um raio tremendo na imensidão se desenhou
Esculpindo o ferro e o fogo
E a vida palpitou
Longo, interminável esquecimento
Num momento
Um homem horrendo
Respirou
A seu lado
Uma clara espécie
Depois chamada de árvore, serpente e anjo
Já respirava
Como mais tarde se provou

Foi assim que a humanidade começou?

terça-feira, 24 de setembro de 2013

Regresso a Ouro Preto


“Bela e negra como a noite pura
A negra branca a minha mão segura
Não sei de nós nesta noite escura
No regaço uma flor transpira gotas de espuma
A boca é boa e branca como a noite pura”


(Ouro Preto, 13/08/11)

domingo, 22 de setembro de 2013

No meio de um parque

Colocas-te no meio de um parque
Talvez para te confundires com tudo à tua volta
Achas que porque tentas imitar uma árvore que esbraceja intemporal
Vais nessa onda perene das coisas mudas
Tu que não viveste para a ver nascer
Não te iludas
Serás descoberto no tempo certo de morrer

sexta-feira, 13 de setembro de 2013

Ruínas

Ruínas
Mar sem propósito
Braços que circundam outros braços de fumo
Ombreiras sem portas
Janelas desventradas no seio das casas
Pátios desolados
Animais sem dono
Ainda os primeiros gemidos de quem nasce
Ou serão os últimos suspiros de quem morre
Ruínas que nos esclarecem
Quando estamos sós
E o tempo como o vento
Aos nossos olhos
Corre

(Sobre as "Ruínas" de Rodrigo Leão) 

quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

SEMPRE DIFERENTE


Hoje o dia amanheceu como qualquer outro dia
Reparei que o jardim estava cinzento
O que não é habitual neste jardim
Então por isso
O dia não amanheceu como qualquer outro dia
Também a música da manhã
Celebrava a morte de Mozart abria com o “Requiem”
Sentia na jugular que o coração batia
A manhã, vendo bem
Não era igual a tantas outras
Depois dizem-me da morte de Joaquim Benite
Tristeza enquanto pensava no Teatro de Almada onde ia há anos
A manhã
Diferente de todas as outras
Única
 
Como todas as manhãs do mundo
Nada se repete
Por muito que o dia pareça amanhecer como qualquer outro dia
Hoje
 
Pela manhã
O jardim estava cinzento
O “Requiem” de Mozart jugulava o meu sentimento
Joaquim Benite nunca mais iria encenar no Teatro de Almada
O dia estava diferente de qualquer outro
Uma suave sensação 
de Nada

quarta-feira, 22 de agosto de 2012

Serenidade


Hoje adormeceste e quase sonhaste
A manhã irrompeu azul na tua fronte impura
Não estavas preparado para a antevisão difusa do amanhecer
Os teus olhos fecharam-se
Na tua mente
Martelos bigornas e outros artefactos
Esperaram pacientemente
A sua oportunidade
Eras um ser vivo que não sente
Abraçando os meandros da serenidade